Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O sonho que Deus não pôde realizar

Dizem que a diferença entre Deus e os jornalistas é que Deus jamais pensou que era jornalista. Deus só condena depois de examinar os fatos, e em Sua infinita misericórdia muitas vezes perdoa os culpados.


Há jornalistas também misericordiosos, mas de preferência consigo mesmos. Perdoam os próprios erros com infinita facilidade. Muitos, quando se convencem de que estavam errados, simplesmente param de falar no assunto. Já não são tantos os que aceitam pelo menos publicar o contraditório, o ‘outro lado’. E bem menor é o número dos que, convencidos do erro, o admitem em público. Este colunista já viu matérias em série baseadas numa reportagem de jornal estrangeiro – com o detalhe de que esta reportagem, em que se calçaram todas as matérias, jamais foi publicada. Com a comprovação de que a reportagem não existia, as denúncias pararam, mas as retificações não surgiram.


Jornalista pode ser também misericordioso com os outros, mas aí depende muito de classe social. Poucos noticiarão que um grande empresário, que administra recursos de terceiros e é responsável pelo emprego de centenas de pessoas, se embebeda todas as noites. Mas vá um jogador de futebol a uma casa noturna, mesmo depois do jogo, mesmo que não beba – ah, esse não escapa da exposição pública. Este não tem direito a vida particular. O risco que corre (risco até físico, dada a paixão de alguns torcedores) não tem importância: o importante é provar que o jogador ‘é da noite’, vive em meios onde há mulheres e bebidas, que técnico e dirigentes não conseguem controlá-lo, e ai dele se errar um lance na semana seguinte!


Um exemplo diferente: quem sabe quanto ganha o executivo de uma grande empresa? Mas artistas populares e atletas profissionais têm salários divulgados, à revelia, sem qualquer preocupação com sua segurança e a de sua família. Recordemos: a mãe de Robinho foi sequestrada pouco depois que ele passou a ganhar bem no Santos. E qual o interesse público em conhecer o salário do empregado de uma organização privada, em que não há dinheiro de impostos envolvido?


Há uma linha muito tênue separando aquilo que seria uma reportagem incorreta, por invadir indevidamente a vida particular das pessoas citadas (mas que em certos casos é até incentivada por gente em busca de notoriedade), e o jornalismo marrom propriamente dito, aquele que serve como instrumento não de informação, mas de difamação e até mesmo de chantagem. Aliás, o ‘jornalismo marrom’ foi combatido no Brasil, em primeiro lugar, pelo mestre Alberto Dines, que em seus tempos de Diário da Noite, no Rio, moveu dura e vitoriosa campanha contra os chantagistas que utilizavam a imprensa para cometer seus crimes.


A diferença é que, até hoje, o jornalismo marrom era limitado a determinados lugares. Quando passa, como está passando, a veículos de primeira linha, ou que já foram de primeira linha, pertencentes a grandes e respeitáveis empresas jornalísticas, o perigo cresce. E não dá para ser misericordioso com quem fuxica a vida alheia com o objetivo, no mínimo, de difamar o próximo.


 


Só vale acusar


Há algum tempo, na esteira da denúncia de irregularidades do reitor da Universidade de Brasília, houve pesadas denúncias contra o reitor da Universidade Federal de São Paulo, Ulysses Fagundes Neto. As denúncias mereceram amplo espaço nos meios de comunicação: foi apontado, no mínimo, como dilapidador de dinheiro público para fins de promoção pessoal.


O Tribunal de Contas da União, em parecer parcial relativo às viagens do professor Fagundes Neto, aprovou-as integralmente, sem restrições. Enquanto reitor, viajou quando tinha de viajar, no interesse da Universidade. E cadê as notícias mostrando que o acusado era inocente? Este colunista não as encontrou.


 


Censura vale?


O Estado de S.Paulo continua submetido à censura prévia: não pode divulgar fatos referentes ao empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney, apontados pela Operação Boi Barrica, da Polícia Federal.


Este colunista tem grande intimidade com o Direito: sabe onde fica a Faculdade do Largo de São Francisco, sabe que o tratamento devido a um juiz é ‘meritíssimo’, sabe o nome de diversos advogados, conhece alguns pessoalmente, entende direitinho o que quer dizer ‘de cujus’, é cunhado, tio, tio-avô e primo de causídicos, é capaz de traduzir ‘Pretório Excelso’ para Supremo Tribunal Federal, conhece o significado de expressões latinas como ‘data venia’, ‘venia concessa’, ‘in hoc signo vinces’ (epa, aí já não é mais coisa de Direito!)


Mas, não conseguindo entender o que acontece no caso, mesmo com toda essa bagagem jurídica, alguém poderia explicar por que, sendo a censura prévia expressamente vedada pela Constituição, o Estadão continua censurado? Constitucionalmente, não seria o correto processá-lo, caso o noticiário fosse considerado irregular por algum motivo? Censura prévia é que não dá para aceitar.


 


Por falar em censura


Alguém poderia explicar, também, por que a blogueira cubana Yoani Sanchez, crítica do regime dos irmãos Castro, foi proibida de vir ao Brasil? O regime cubano, embora isso também seja errado, poderia justificar a proibição de sua viagem aos Estados Unidos pelas difíceis relações entre Havana e Washington. Mas por que proibi-la de visitar o Brasil, onde eminentes homens públicos se desmancham em lágrimas sempre que chegam perto de Fidel Castro? Justo o Brasil, que se apressou a prender e deportar os boxeadores cubanos que se atreveram a fugir de lá? Só falta proibirem a moça de visitar também a Venezuela!


 


Jango no Uruguai


Entre as fotos que fazem parte do Memorial João Goulart, recentemente inaugurado em São Borja, no Rio Grande do Sul, uma se destaca: a chegada de Jango ao Uruguai, no dia 2 de abril de 1964, logo após ter sido deposto. Jango não mais veria o Brasil: só voltou para ser enterrado.



A maior parte das fotos foi feita pelo jornalista de nacionalidade espanhola, nascido no Marrocos, Aurelio Gonzalez, ‘El Tigre’. Ele ocultou os filmes no encanamento do prédio, para que a ditadura militar uruguaia não os encontrasse e destruísse. Figura notável, El Tigre: chegou menino ao Uruguai e se transformou em uruguaio, a tal ponto que, quando a ditadura acabou, foi para lá que voltou.


 


A primeira censura


Outra figura notável de jornalista, no caso da ida de João Goulart para o Uruguai, foi a de Ewaldo Dantas Ferreira, um dos maiores repórteres brasileiros. Ewaldo foi ao Uruguai pela Folha de S.Paulo. Ninguém sabia onde Jango estava: temia-se por sua segurança. Ewaldo, com a sorte que acompanha os grandes goleiros e os grandes repórteres, tomou o táxi no aeroporto de Montevidéu e começou a conversar com o motorista. ‘¿Es usted brasileño?’, perguntou o uruguaio. Na véspera, disse, tinha transportado o presidente brasileiro.


Levou Ewaldo direto à casa de Jango. Ewaldo o fotografou, entrevistou, perguntou tudo, Jango respondeu tudo. Os filmes foram envelopados e colocados nos Correios, como se fazia na época; a matéria foi devidamente enviada por telegrama. E pronto: tudo se evaporou. O jornal não recebeu nem publicou uma linha, uma foto sequer. Havia boi na linha. Ewaldo, o primeiro a sofrer a censura do regime militar, ainda tem o original do telegrama com a matéria. As fotos desapareceram de vez. O leitor, maior interessado no assunto, acabou sem nada: a censura começava a mostrar seus dentes.


 


O preconceito comportamental


Aconteceu agora no Rio: um marido traído moveu ação contra o amante de sua mulher. O juiz não só negou seu pedido como o chamou de ‘solene corno’.


Um famoso advogado do Rio conta uma história maravilhosa ocorrida há algum tempo: a de um marido traído que resolveu dar um flagrante de adultério na esposa. Acompanhado de policiais e de um delegado, invadiu o motel e encontrou a esposa em atividade. Irritou-se e partiu para cima do amante. O delegado levado por ele, no meio da confusão, gritava: ‘Segura o corno! Segura o corno!’


Preconceito, como tiririca, é difícil de extirpar.


 


O preconceito ideológico


Mercedes Sosa era comunista. Mas, para a grande maioria do público, que não iria conversar com ela, mas ouvi-la, tratava-se apenas de uma grande artista. Boa voz, bom ritmo, um bumbo chato que se tornou seu símbolo mas do qual tantos gostavam, cantora de alta qualidade. Quando morreu, um de seus obituários, fruto evidente de preconceito ideológico, ironiza suas doenças, ‘ligadas ao subdesenvolvimento latino-americano’.


1. Mercedes Sosa tinha idéias políticas definidas, mas não era uma política. Quanto Stalin morreu, fazia sentido discutir suas teses políticas. Não era o caso de Mercedes Sosa.


2. Não se deve, como princípio geral, atacar quem não pode defender-se. O carrasco xiita que iria enforcar Saddam Hussein abusou ao ironizar sua situação de condenado à morte. Se nem no caso de Saddam Hussein é admissível que se tripudie – e Saddam tinha muitas mortes nas costas – por que tripudiar sobre uma artista que jamais arcou com a culpa de algum assassinato?


3. Diziam os romanos que dos mortos só se fala o bem. Não é regra de aplicação geral, claro; não se podia ignorar o peso do mal na vida, por exemplo, do ditador romeno Nicolae Ceausescu. Mas definitivamente não era este o caso de Mercedes Sosa. Atacá-la como foi feito não é jornalismo. É inaceitável.


 


Livro-cabeça


Em 1984, o grande clássico de denúncia das ditaduras, mostra-se como um regime totalitário procura reduzir o número de palavras para que o pensamento não possa desenolver-se; e como mudar seu sentido, de maneira a dar um bom significado ao que é intrinsecamente ruim. Em síntese, ‘guerra é paz’, ‘ignorância é força’, ‘liberdade é escravidão’.


George Orwell lançou o livro em 1948 (daí o título, 1984, apenas invertendo os dois algarismos finais). Antes dele, escrito logo depois da Segunda Guerra Mundial e editado em 1947, em Berlim, Victor Klemperer escreveu o denso LTI – iniciais em latim de Língua do Terceiro Reich, o império nazista de Hitler.


Klemperer analisa a manipulação da língua alemã por Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista. Catedrático de Línguas Latinas na Universidade de Dresden, estuda as mudanças deliberadas no alemão, o trabalho propagandístico, a tentativa de mudar, via linguagem, o próprio pensamento. Os originais foram guardados por uma amiga (Klemperer, judeu convertido ao protestantismo e casado com uma protestante, escapou pelo casamento e pela conversão de ser enviado a um campo de concentração, mas foi afastado do emprego e era um dos suspeitos de sempre). Ele morreu em 1960.


O livro, esplendidamente traduzido pela professora Miriam Oelsner, da Universidade de São Paulo, sai na quinta-feira, às 19h30, na Sala Goethe do Goethe-Institut, São Paulo (Rua Lisboa, 974). Quem quiser assistir ao debate sobre a obra, entre o jornalista Luís Krausz, o editor César Benjamin e a professora Miriam Oelsner, deve inscrever-se pelo endereço biblioteca@saopaulo.goethe.org, ou por telefone, (11) 3296-7001, com Ana Teresa ou Bethe.


 


Livro-estômago


Sonia Hirsch, que cultiva a culinária o mais natural possível, com muitas folhas, muita coisa integral, quase zero de açúcar, está lançando um novo livro: Amiga Cozinha. Sonia é minha prima-irmã, queridíssima, mas temos algumas diferenças: a principal é que, na mesa, gosto de tudo o que ela não recomenda. Sem problemas: é uma das autoras de maior sucesso no ramo. O livro será lançado em São Paulo (dia 22, 19h30, Sesc da rua Dr. Vila Nova, 8º), Campinas (dia 23, 19h, Fnac do Shopping D. Pedro), e Rio (dia 29, 19h, Livraria Travessa Leblon, Shopping Leblon, 2º piso). No livro, para este colunista, um destaque: excelentes receitas de molhos para salada.


 


Como…


De anúncio publicado em boa parte da imprensa:


** ‘Transamérica e Avon contra o câncer de mama’


Ainda bem! E faz lembrar um famoso cartaz da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que levou centenas de milhares de pessoas às ruas de São Paulo, num protesto contra o presidente João Goulart:


** ‘O comércio está com Deus’


 


…é…


De um grande jornal:


** ‘Professores são foco da campanha de atenção à gagueira’


Excelente! E, já que estamos em fase de lembranças, o Corinthians teve um ponta-direita gago, Ataliba. O Fausto Silva, sempre brilhante, na época era repórter de campo da equipe de Osmar Santos. Adorava entrevistar o gaguinho. Um dia, numa conversa mais séria, Faustão perguntou-lhe se, campeão paulista, com dinheiro no bolso, não pensava em cuidar da gagueira. Resposta de Ataliba (ler como gago):


– Não, não precisa. Eu já gaguejo bem!


 


…mesmo?


Do portal noticioso de um grande jornal:


** ‘Já aos argentinos basta um empate para assegurar a classificação sempre, mas torcendo contra o Equador, que pega o Chile em Santiago’.


Se tinha de torcer para o Equador contra o Chile, o empate não bastava para assegurar a classificação. Quanto ao ‘sempre’, deve ter alguma função na frase. Um dia, confiemos, alguém a descobrirá.


 


E eu com isso?


O presidente Lula muitas vezes tem razão. Parece ter razão, por exemplo, quando diz que a imprensa anda muito azeda, procurando defeitos no Brasil. Mas talvez até não seja bem assim: é que nossos meios de comunicação acreditam que tudo o que é esquisito é genuinamente nosso. Não é: coisa nossa, irrevogavelmente nossa, é a irrevogabilidade das decisões do senador Mercadante, é a jabuticaba, é o Pelé. Outras coisas se encontram pelo mundo todo. Vejamos:


** ‘Gato é registrado como hipnoterapeuta no Reino Unido’


** ‘Polícia alemã investiga molho de kebab após agressão’


** ‘Casal admite ter trocado pássaro raro por 2 crianças nos EUA’


** ‘Girafas de Michael Jackson podem ser expulsas de reserva’


** ‘Rainha Elizabeth vai ao teatro às escondidas com o marido’


** ‘Cientistas usam raio laser para criar lembranças falsas no cérebro de moscas’


E não podemos dispensar o noticiário frufru, do Brasil e do exterior.


** ‘Adriane Galisteu almoça de óculos escuros e gesticulando’


** ‘Gerard Butler come um sanduíche ao lado de uma loira em bistrô em Nova York’


** ‘Angelina Jolie enfrenta chuva para trabalhar’


** ‘Robbie Williams chora após ver seu motorista atropelar um fotógrafo’


E que é que queriam que ele fizesse? Saísse às gargalhadas?


 


O grande título


Os concorrentes são poucos, mas bons. Comecemos pelo esporte-policial:


** ‘Delegada quer impedir goleiro do Fla de chegar perto de mulher’


Esquisitíssimo: ainda se fosse de outro time, vá lá.


Passemos pela área científica:


** ‘Cirurgia por robô leva mais a impotência’


Para onde a cirurgia leva a impotência?


E cheguemos ao grande título, na área, digamos, médico-veicular:


** ‘Polícia Rodoviária punirá doadores para evitar atropelamentos’


O leitor que descobrir o que é que isto significa, sem ler a matéria, ganha uma foto do senador Suplicy de cuecas vermelhas por cima do terno.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados