Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O vício como regra

A criação de um conselho gestor que não seja integrado por entidades, mas por pessoas, é o mínimo que se pode esperar na estrutura organizacional de uma TV pública. Não se deve inverter os valores, saudando excessivamente o que não é mais do que uma obrigação. Saudar a virtude equivale a admitir o vício como regra. É exatamente o que não precisamos neste país.


De um conselho corporativista, até a TV Rebelde, de Havana, já deve ter se livrado. O problema é entender de que conselho estamos falando agora – e qual o processo de escolha de seus componentes. A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) responde: indicação do governo. A imagem a ser editada sobre a resposta poderia ser a de urubus enchendo os céus, ameaçadores como os pássaros de Hitchcock.


O fato é que, antes de começar, a grande rede pública de televisão já enfrenta seu primeiro dilema ético: deixar-se contaminar pela politização ou adotar critérios técnicos para a construção da rede. Os indicadores, infelizmente, apontam até agora para a primeira opção. Se isso acontecer, a TV Brasil nascerá morta. Será o Fome Zero da radiodifusão.


Luz amarela


Isso pode ser evitado. A má notícia é que o governo tem muito pouco tempo para se decidir. A Medida Provisória que dará a partida para a rede sairá em setembro. Também em setembro, mais precisamente no dia 10, uma segunda-feira, as grades da TVE e da TV Nacional serão unificadas. É um passo complicado. Uma emissora é pública; outra é estatal. Misturadas no mesmo caldeirão, ensina a física que a temperatura resultante será intermediária.


A primeira atração da nova rede poderá ser, portanto, um filme de terror. Não há um marqueteiro no mundo (um marqueteiro sério, pelo menos) que veja isso com simpatia. Atrações de estréia devem transmitir esperança, e não temores. A velocidade com que a questão se politiza, contudo, deixa o governo numa posição difícil. Não falta quem deixe de enxergar aí sinais bem claros de perda de controle.


Basta olhar para os céus. O núcleo envolvido na construção da nova TV pública não se caracteriza exatamente pela abundância de especialistas na matéria. O ministro Franklin Martins recebe uma grade de programação por dia. O técnico Dunga deve receber umas quinze escalações. Nos dois casos, a prolixidade é espantosa, mas o Brasil está cheio de especialistas em futebol.


No que tange à televisão pública, porém, é impossível identificar a essa altura um projeto consistente o bastante para durar três anos. O alarme está soando e o governo só tem duas opções: admitir o incêndio e combatê-lo, ou deixar a idéia da TV Brasil virar cinzas e eleger rapidamente em quem lançar a culpa.


Sem espanto algum


Inúmeras questões básicas têm sido debatidas à exaustão. Criar uma arquitetura de rede vertical, a exemplo da TV comercial brasileira, ou horizontalizá-la, seguindo uma tendência mais contemporânea; amparar-se em modelos existentes, como a PBS nos Estados Unidos e a BBC, na Inglaterra, ou buscar um modelo próprio.


O ministro Martins criou até um conceito de ‘adesão variável’, segundo o qual cada emissora se filia à nova rede com diferentes graus de direitos e responsabilidades – além de definir um núcleo de programação intocável na faixa nobre e percentuais para a veiculação, por exemplo, de produções independentes.


O ônibus está sendo pintado antes que lhe seja atribuído um motor. Trabalha-se com pneus de aros diferentes, porque afinal todos têm o direito de opinar. O ônibus pode não ir muito longe, mas não se pode negar aos companheiros o direito de tirar sua casquinha. O governo tem pouquíssimo tempo para reverter isso, se essa for a sua intenção.


A politização de áreas técnicas já não espanta mais ninguém. Mas deveria. No Brasil da TV Brasil é normal que uma agência de aviação civil seja dirigida por aventureiros ou que o setor de infra-estrutura aeroportuária seja comandado por quadrilhas.


Os aviões caem como moscas, é claro. Mas é só ir comprando mais alguns.


 


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Jornalista e diretor de TV