Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O padre e os moços

Imaginemos, apenas para argumentar, que o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor de São Paulo, tenha contado a verdade inteira no caso de extorsão de que foi vítima. Imaginemos que as denúncias feitas pelos acusados de extorsão sejam mentiras inventadas apenas para que se defendam do crime.


Neste caso, mesmo que os meios de comunicação dêem o mais amplo espaço possível ao sacerdote extorquido e divulguem à exaustão as provas de que os acusados mentiram, a imagem pública do padre Júlio Lancellotti estará ferida. Sempre haverá os que leram as denúncias e assistiram às acusações e não a decisão final, os que ouviram dizer, os que acham que alguma coisa feia deve ter ocorrido.


O caso do sacerdote católico não é o único: a avalanche de denúncias torna impossível, para o consumidor de notícias, a elaboração de uma análise equilibrada dos fatos. Pior: em busca de prestígio, de holofotes, de promoção profissional, há autoridades que usam deliberadamente a imprensa para demonizar os alvos que escolheram. Não lhes importa que, ao final de tudo, demonstre-se que não havia culpa e que as acusações tinham sido injustas: o réu terá sido condenado pelo tribunal da opinião pública. E ai do juiz que, de acordo com as provas, ousar absolver alguém: será o pizzaiolo, o promotor dos criminosos.


Que fazer? A imprensa não pode fazer muita coisa: se as autoridades apresentam uma testemunha (mesmo que as histórias que narra depois se comprovem falsas), não pode esconder o fato. E, ao publicá-lo, contribui para que a reputação de uma pessoa que pode ser inocente seja destroçada.


Talvez a solução esteja em costumes estrangeiros que poderiam ser importados. Na Suíça, por exemplo, o processo penal corre em segredo – não se divulga sequer que há um processo contra alguém. Concluído o julgamento, se o réu for condenado, é divulgado então o processo inteiro.


É a melhor solução? Talvez sim, talvez não: é um caso a discutir, inclusive entre nós, jornalistas. O que não se pode é manter a situação atual, em que a reputação de um cidadão, não importa o seu passado, pode ser destruída por declarações, mesmo incorretas, de uma autoridade. Ou por depoimentos de bandidos.




Anonimato


A história contada pelo padre Júlio Lancellotti é difícil de aceitar. Não é impossível que ele tenha dado sabe-se lá quantas dezenas ou centenas de milhares de reais a alguns indivíduos, apenas pela esperança de que enxergassem a Verdade. Mas algumas das histórias que levantaram contra ele também são pouco palatáveis: por exemplo, uma mulher, anônima, que disse ter trabalhado com o padre e que o acusa de pedofilia. O depoimento foi imediatamente divulgado – mas, logo depois, a polícia informou que não sabia ainda se a referida senhora tinha efetivamente trabalhado na ONG do padre.


Assim não dá: uma acusação dessa gravidade, num caso já de si explosivo, só pode ser espalhada se alguns pressupostos de que poderia ser verídica tivessem sido verificados. Mas não se sabe sequer se trabalhou onde disse ter trabalhado.




Salvadores do Universo


O caso do padre Júlio Lancellotti já é complicado se um dos lados for absolutamente inocente e seus acusadores totalmente mentirosos. Mas essa situação definidíssima normalmente não acontece – e aí pioram muito os dilemas dos veículos de comunicação. Os repórteres tendem a acreditar nas autoridades; e nem sempre as autoridades merecem esse crédito (aliás, os velhos e bons manuais de Jornalismo recomendavam não confiar em ninguém, especialmente nas autoridades).


Num caso recente, repórteres de grandes veículos declararam candidamente que não precisavam ‘ouvir o outro lado’ porque as informações de que dispunham vinham de fontes oficiais, em que confiavam cegamente. Bom, poucas vezes houve tantas fontes oficiais coincidindo nas informações quanto no caso do assassinato de Vladimir Herzog pela ditadura militar: todas garantiam que ele havia se suicidado. E daí? Confiar em ‘fonte oficiais’ dá menos trabalho. E os acusados devem mesmo ter feito alguma, ou não estariam nesta situação.


Citando o deputado Ibsen Pinheiro – ele, vítima de situação semelhante, em que foi linchado pela imprensa – difícil não é lidar com jornalistas mal-intencionados (se bem que o problema também exista). Difícil é lidar com jornalistas bem-intencionados, que acham que estão salvando o mundo.




A hora do foca


E há, ainda, o problema econômico: para gastar menos, alguns portais de internet colocam estagiários no comando do noticiário. Eles, que nem chegaram ainda a ser focas, põem a informação no ar, sem checagem, sem chefia. A questão não é apenas a informação falsa: a garotada está fazendo estágio exatamente para aprender. Se não há quem os ensine, como aprenderão alguma coisa?




Exagerando


Por falar em denuncismo, o Banco Central foi acusado de ser parceiro da multinacional Cisco e da Mude, ambas acusadas de sonegação de impostos e sob investigação da Receita Federal. E qual teria sido a associação? Há alguns anos, o Banco Central comprou equipamentos Cisco para seus sistemas de teleinformações. Faltou dizer que outras centenas, milhares de empresas compraram esses equipamentos, dos quais a Cisco é um dos principais fornecedores internacionais.




É tudo verdade 1


Não é só em autoridade que a imprensa gosta de acreditar. Empresário com megaprojetos, daqueles bilionários, que levarão anos de negociações para eventualmente se tornar viáveis, esses merecem todo o espaço disponível. Já foi o maior prédio do mundo, que seria construído numa região degradada de São Paulo (isso se os proprietários topassem vender as áreas, se a prefeitura mudasse o zoneamento, se o sistema viário fosse totalmente modificado – e se alguém entrasse com o dinheiro); agora é o super-hiper-mega-porto de Peruíbe, apenas uma ilha artificial a ser construída a três quilômetros da costa, ligada ao continente por uma superponte, capaz de suportar caminhões ultrapesados e trens, e a poucos quilômetros de Santos, o maior porto da América Latina.


OK: se Afonso está na Seleção brasileira, se a torcida do Flamengo diz que Obina é melhor que Eto’o, tudo é possível. Mas, tirando a hipótese de que g Governo resolva bancar os custos, com o seu, o meu, o nosso dinheirinho, esse mega-hiper-ultra-super-porto só será inaugurado no dia 30 de fevereiro de algum ano bem, bem, bem remoto.




É tudo verdade 2


Está nos jornais: a Varig foi obrigada a remanejar aviões e a suspender alguns vôos para evitar o cancelamento de suas rotas internacionais. Motivo (também publicado nos jornais): faltam aviões no mercado mundial. Em seguida, conta-se que a Varig tem hoje 5 Boeings 767-300 e até o fim do ano – dentro de dois meses! – terá dez. Virão, no mesmo prazo, outros nove 737-300 e cinco 737-800. A notícia está corretíssima ao citar a falta de aviões no mercado mundial. E, se faltam aviões, de onde virão, até o fim do ano, os que foram anunciados?




Santo Antônio


Nosso santo casamenteiro ficou conhecido pelo dom da ubiqüidade: num determinado dia, apareceu simultaneamente em duas cidades distantes. Um grande jornal acaba de mostrar que um de seus repórteres também faz milagres: no mesmo dia, estava cobrindo uma reunião em Washington e a campanha eleitoral no Sul da Argentina.




Nossa língua


Da grande imprensa: um determinado cavalheiro, por pura barbeiragem, acabou atropelando e matando uma pessoa. Diz o título: ‘Ele foi acusado de dirigir em flagrante e autuado por homicídio doloso’.




Nossas leis


O portal jurídico Migalhas chama a atenção dos jornalistas: ao contrário do que se vê no noticiário, CPI não indicia ninguém. CPI pede o indiciamento.




Onde mesmo?


Na chamada, ‘Alckmin é internado com dores no peito’. Na notícia, ‘Alckmin é internado com dor abdominal’.




E eu com isso?


A gente pode não saber onde a empresa vai buscar aviões, nem qual o problema que levou o ex-governador Alckmin ao hospital; em compensação, sabe com precisão, no momento mesmo em que os fatos ocorriam, que Matthew McConaughey e sua namorada brasileira trocam beijos no mar. É claro que namorados trocarem beijos não chega a ser notícia: notícia seria se eles estivessem tentando afogar um ao outro. Mas, enfim, beijaram-se.


E sabemos também que o ‘decote da number six de Battlestar Galactica revela mais do que ela gostaria’. Traduzindo, aparecem duas metades de mamilos, mostrando que os seios tentam escapar do vestido. Mas quem é que disse que isso não é exatamente aquilo de que ela não só gostaria, como também planejou?




O grande título


A concorrência é brava. Há dois títulos sobre saúde, um sobre o futuro e outro – bem, o outro veremos daqui a pouco.


Na área de saúde,


**Estar solteiro e chiclete ajudam a manter o peso ideal


** ‘Artistas de circo alertam sobre câncer no Ibirapuera’


Alguém sabia que o Ibirapuera estava com a insidiosa moléstia?


Sobre os dias que virão:


** ‘Sem poder prever o futuro, Nicole Kidman evita dizer que é feliz’


Algum dia, alguém certamente indicará o que tem uma coisa a ver com a outra.


Mas o grande título é o que se segue:


** ‘Associação se recusa a falar sobre regras’


Certo: definitivamente, não é tema para conversas sociais.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados