Em pouco menos de quinze anos, a internet mudou o jornalismo e a forma de produzir e distribuir informação. Espaço privilegiado do ofício, a mídia impressa sentiu o drama: num primeiro momento, desdenhou da nova mídia; depois, correu para adaptar-se, ainda de forma mecânica e linear, às possibilidades abertas pelo ambiente digital multimídia; e agora, acossada pelo crescimento exponencial das funcionalidades disponíveis na web, amarga quedas históricas na circulação média, nas taxas de leitura e, por decorrência, na rentabilidade. Sem contar, é claro, os eventuais arranhões no bem intangível mais caro aos jornais e revistas: a credibilidade.
Nesse ambiente turbulento, e não por isso menos fascinante, o distinto público assumiu um protagonismo inédito no processo da comunicação – o que é muito bom –, mas a tecnologia cada vez mais acessível e sofisticada trouxe consigo um quadro de superabundância de informação – o que não é necessariamente o melhor dos mundos. Nunca antes foi tão indispensável uma instância capaz de organizar a balbúrdia, dar sentido à fragmentação reinante, construir nexos entre dados e informações à primeira vista díspares e contraditórios, e oferecer contextos inteligíveis àquele mesmo público agora protagonista. O jornalismo é capaz de encarar essa tarefa, e de sobejo já demonstrou isso. Mas, e os jornais tal qual os conhecemos? O que será deles?
Os catastrofistas garantem que o fim do jornal em papel está próximo, os analistas mais atilados evitam juízos peremptórios. Este é o caso do jornalista Lourival Sant´Anna, autor do recém-lançado O destino do jornal (270 pp., Editora Record, Rio, 2008), livro que traz sua pesquisa para dissertação de mestrado defendida ano passado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Seu estudo é centrado nos três maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo, O Globo e Estado de S.Paulo) e sustenta-se em três pilares: 1) o acirramento da concorrência: como manter a identidade e sobreviver num ambiente de superoferta de informação; 2) as circulações médias caem e o leitor está cada vez mais velho: como conquistar os jovens?; e 3) como os jornais estão lidando com a interatividade que o público deseja e requer?
Repórter especial do Estado de S.Paulo, Sant´Anna é um profissional que sabe pensar o seu ofício. É com ele a entrevista a seguir.
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O jornal em papel vai acabar? Por quê?
Lourival Sant´Anna – Não. O jornal impresso tem atributos apreciados por uma fatia dos leitores, que justificam a sua coexistência com o jornal online até onde a vista alcança. Nas pesquisas, os leitores elogiam a portabilidade do jornal impresso: você o leva daqui para ali, sem se preocupar com aparelhos nem conexões (ainda que sem fio). Mas não estamos falando do mesmo jornal impresso que existe hoje. O jornal que informa o que aconteceu ontem não terá espaço no mercado. O leitor já sabe o que aconteceu ontem: ouviu no rádio, viu na internet, checou no celular e confirmou tudo à noite, na TV. O jornal deverá se dedicar àquilo em que ele é bom e insubstituível: a análise e interpretação do fato. Dizer ao leitor o que a notícia significa para ele, para sua cidade, para o país, para o mundo. E tornar essa leitura prazerosa, por meio da narrativa: histórias bem contadas, com começo, meio e fim. Ao se desincumbir de noticiar tudo o que aconteceu ontem, o jornal ficará menor. Ele elegerá alguns temas e os aprofundará. Como diria o Caetano Veloso, ‘quem lê tanta notícia?’ O leitor não tem tempo para tanta informação.
Esse mesmo veículo também será distribuído pela internet, e parte crescente do público – certamente maior do que a que lê o impresso – o lerá na internet. Ou porque prefere o computador ao papel, ou porque lhe sai mais barato, ou porque o jornal impresso não chega aonde ele está. Portanto, o jornal impresso será menor também em tiragem.
Na era pré-internet, o jornal manteve clara vantagem sobre os outros meios na distribuição da informação organizada e interpretada, além de se constituir espaço privilegiado da opinião e do debate público. Mas era uma comunicação de uma só mão, quando muito com algum feedback na seção de cartas dos leitores. Com a disseminação da internet, tudo mudou – e isso não faz nem 15 anos: a comunicação deixou de ser um discurso unívoco e transformou-se em diálogo; o que antes era uma relação vertical tornou-se horizontal, na forma de redes de comunicação cada vez mais amplas. Que conseqüências isso trouxe para a atividade jornalística, para o dia-a-dia de repórteres e editores? E para o modelo de negócios das empresas jornalísticas?
L.S. – De fato, a plataforma digital – não só na internet, pois o mesmo poderá acontecer com a TV e o rádio, mais adiante – rompe a dicotomia emissor-receptor. O usuário (o termo já diz tudo, não se trata mais de uma audiência passiva) também emite informações. E participa da hierarquização do ‘conteúdo’, por meio dos softwares que elevam para o alto das home pages as matérias mais clicadas. Então, o usuário é repórter e editor. Isso é chamado, pelos entusiastas, de ‘democratização’ do jornalismo. É o equivalente, no jornalismo, à democracia direta, em substituição à representativa. Tenho dúvidas, em ambos os casos, de que isso seja de fato ‘democratização’. O jornalista é um profissional treinado, e que recebe condições de trabalho de uma empresa independente, que vive de sua credibilidade – se não for assim, desculpe, mas não é jornalismo – para apurar e editar a informação tendo como critério o interesse público. Ele não é perfeito, ainda mais porque essa é uma esfera subjetiva. Mas tem o propósito da isenção. Está sob forte vigilância: dos colegas, dos chefes, dos leitores, das fontes, do sindicato, da Justiça etc.
Isso não é perfeito, mas é bem melhor que a alternativa: veículos infestados de informações falsas, emitidas por fontes com agendas próprias, sejam políticas, empresariais, racistas, religiosas ou ideológicas, sem filtros nem controles. E hierarquizadas ao sabor das preferências da audiência, que pode estar sendo enganada por conteúdos falsos e predileções duvidosas. Repare que, mesmo que o usuário tenha a melhor das intenções de compartilhar informações corretas, ele tem os seus afazeres, seu trabalho, seus estudos. Ele não vive disso. Os jornalistas, ao contrário, vivem da informação – o que significa que dedicam todo o seu tempo a ela. Recebem, das empresas, meios de se locomover, de se comunicar, enfim, de cobrir todas as despesas que envolvem a apuração da informação – que não é barata. E, por cima de tudo isso, ele tem ainda um nome a zelar – que a maioria dos jornalistas considera o seu maior patrimônio, quando não o único.
Dito isso, é evidente que a plataforma digital abre novas perspectivas para o jornalismo e para as empresas jornalísticas. Ela permite uma vigilância ainda mais intensa do nosso trabalho, que pode ser criticado e corrigido em tempo real – e isso é muito bem-vindo. A criação das redes de relacionamentos pessoais, empresariais, profissionais, científicos, culturais é um negócio do qual as empresas de comunicação podem participar. A publicidade encontra no meio digital o seu habitat natural. O anunciante tem um feedback instantâneo do seu anúncio – quem o está acessando, e quem está realizando compras depois de acessá-lo. Quando digo ‘quem’, refiro-me a informações bastante precisas sobre o consumidor, graças ao endereço eletrônico que cada computador possui na rede e às informações cadastrais dos usuários dos sites. Isso permite aos anunciantes ajustar suas operações instantaneamente, com as óbvias implicações em eficiência e lucratividade.
Costumo dizer que, nem nos nossos sonhos mais delirantes, nós, jornalistas, imaginamos um ambiente tão fabuloso quanto o mundo digital – um banco de dados infinito atualizado a cada segundo. Nele, acho que o jornalismo – com seus valores intangíveis, no centro dos quais está a credibilidade – torna-se ainda mais imprescindível: nesse bombardeio caótico de dados, será ainda mais vital saber o que é verdadeiro e o que é importante. E isso quem proporciona é o jornalista.
O meio jornal é imbatível na capacidade de organizar, hierarquizar e apresentar numa página impressa os distintos elementos de um mesmo fato. Por que, pelo menos os grandes jornais brasileiros, não conseguem fazer o mesmo no meio digital? Falta cultura multimídia? Nossos formuladores de operações jornalísticas na web ainda pensam com a cabeça no papel?
L.S. – Os jornais têm versões online que são a reprodução, na internet, de suas páginas impressas. Isso não tem segredo. É a mera transposição de uma plataforma para outra – a distribuição do produto não mais em caminhões e kombis, mas em cabos e ondas. Outra coisa são os portais que as empresas de comunicação também têm. Para que fique claro: a versões online dos jornais são estado.com.br, oglobo.globo.com/oglobo e folha.uol.com.br/fsp; já os portais são estadao.com.br, g1.globo.com e uol.com.br. Nos portais, as empresas se propõem a explorar as possibilidades expressivas da internet. Neles, texto, áudio e imagens interagem dinamicamente. Agora, a cultura jornalística segue sendo profundamente influenciada pela linguagem escrita. O rádio e a televisão, que estão aí há mais tempo, nunca se desligaram dessa influência. A razão talvez seja simples: o pensamento linear, lógico, que estabelece relações causais entre os fatos, que apreende a história como uma sucessão de fatos conexos, encontra no texto escrito a sua expressão mais clara.
A internet deu nova vida à escrita. Já não estávamos escrevendo muitas cartas quando começamos a escrever e-mails. E hoje muitas vezes preferimos escrever um e-mail ou SMS do que falar ao telefone. Entretanto, a plataforma multimídia é a forma de expressão completa, que melhor representa o mundo como ele é. O interessante é poder escolher a melhor forma de transmitir a informação: seja vídeo, foto, infográfico, desenho, mapa, áudio ou texto. Nesse ambiente, o texto continuará ocupando um lugar central. Gosto da brincadeira: ‘Uma imagem vale por mil palavras. Agora, diga isso com uma imagem’.
Pesquisas mostram – e seu livro as cita em detalhes – que há um desinteresse crescente pelo jornal em papel, sobretudo entre os jovens. Luciano Martins Costa notou, no Observatório, que ‘as famílias que ascendem à classe média já não aspiram a uma assinatura de jornal, mas a um computador com acesso à internet’. Que alternativas terão os jornais para formar novos leitores que garantam o futuro dessa mídia?
L.S. – Os jornais podem ser lidos no computador, com vantagens para as empresas que os editam e para os leitores. Imprimir e distribuir o jornal representa mais de um terço do nosso custo. Pela internet, nosso jornal é lido no Japão no instante em que é colocado no ar. Arthur Sulzberger, o publisher de The New York Times, disse uma vez que, da palavra ‘newspaper’, nosso negócio é ‘news’, não ‘paper’, e faremos bem na internet o que fazemos bem no impresso. Mas isso me parece retórico. É razoável prever que a migração para o online mudará as características do jornal e do jornalismo. Enquanto durar a atual geração de leitores, o jornal poderá permanecer intacto na internet, com nossas páginas colocadas lá idênticas às impressas. Mas está chegando uma nova geração de usuários que poderá não se interessar por esse produto. E aí? Os jornais vão ceder às suas demandas por interação, por ‘emissão’ de informações?
Tenho uma preocupação ainda mais aguda: como vamos ganhar dinheiro na internet? Por enquanto, sustentamos nossas operações de internet com a – alta – rentabilidade de nossos jornais impressos. O exemplo bilionário do Google aponta para o link patrocinado. Adaptando essa ferramenta para o produto jornalístico, isso significa transformar palavras do texto em links, que remetem a operações de publicidade, marketing e venda direta. Desfazem-se as fronteiras entre produto jornalístico e anúncio publicitário. A figura do ‘gerente de conteúdo’ em alguns sites tem um pé na redação e outro no comercial. Ele é capaz de ir à reunião de pauta e propor uma matéria com a palavra ‘sabonete’ porque tem um cliente que quer pôr um link patrocinado. É o fim da ‘separação Igreja-Estado’, que historicamente tem assegurado a nossa credibilidade.
Como ganhamos dinheiro hoje? Nossos leitores dizem que compram nossos jornais porque acreditam no que publicamos. Nossos anunciantes dizem que compram espaços publicitários porque com isso transferem o prestígio de nossos jornais para as suas marcas. Isso está nas pesquisas – não sou eu que estou supondo. Nosso negócio é a credibilidade. Se a perdermos, podemos até ganhar dinheiro – mas teremos mudado de negócio. Isso não será mais jornalismo. Podemos ir para casa. Mas, o que acontecerá com a democracia? O que acontecerá quando não houver mais jornalistas colocando todos os dias uma lupa sobre os governos, as empresas, as ONGs, o ensino, a saúde, a Justiça, a polícia etc.?
Está dito no seu livro (pág. 115): ‘Se o valor institucional de uma marca é importante em qualquer produto, no jornal, ele é crítico. Prestígio e influência são ativos, que resultam, ainda que indiretamente, em rentabilidade’. Mais adiante (págs. 121 e 142), um dos seus entrevistados (Sandro Vaia) menciona números da consultoria McKinsey segundo os quais a rentabilidade média dos jornais no mundo é de 25% e, no Brasil, algo em torno de 10% a 20%. Convenhamos que são taxas de retorno muito altas, próximo aos padrões da indústria bancária nos seus melhores momentos… Malgrado o aumento circunstancial da circulação e da receita publicitária em 2007, qual a principal causa da crise vivida pelos jornais brasileiros? Acirramento da concorrência no mercado da informação ou despreparo empresarial para conviver com margens de lucro condizentes com um ambiente mais competitivo?
L.S. – Os jornais vivem um bom momento no Brasil, do ponto de vista da rentabilidade e da circulação. E acho que por isso mesmo esse é o momento propício para pensarmos no nosso futuro. Pensamos mais serenamente quando estamos bem do que com a corda no pescoço. Há uma migração estrutural da audiência e das receitas publicitárias dos meios analógicos para os digitais. Isso é inexorável. O Brasil já superou a marca dos 40 milhões de usuários de internet. Ora, isso é uma boa notícia. Se soubermos trabalhar bem, poderemos tirar proveito disso. A internet é estímulo para saber mais. Ela funciona como um teaser, que deixa um gosto de ‘quero mais’. O rádio e a TV também fazem isso. Então, na manhã seguinte, devemos dizer ao leitor o que é verdade, o que é importante e o que significa.
Os três jornais brasileiros que você pesquisou estão suficientemente atentos para os desafios impostos pela inovação tecnológica ao ofício e à gestão?
L.S. – Sim, estão atentos e cientes. Mas as implicações de tudo isso ainda não estão claras. E, para quem tem a responsabilidade de decidir, não é fácil introduzir mudanças, trilhar um caminho inexplorado. Ainda mais num momento em que os jornais estão bem. O meu trabalho é uma modesta tentativa de ajudar a iluminar o caminho que temos – empresas, jornalistas, estudantes, cidadãos e até governos – pela frente.
Como avalia, no médio e longo prazos, a manutenção dos jornais como espaço privilegiado da edição criteriosa e da informação contextualizada e o fato de dependerem, para sobreviver, de bens finitos (dinheiro e tempo do leitor) e ambientalmente delicados (a indústria de papel e celulose)? É uma sinuca de bico anunciada?
L.S. – A redução do número de páginas, do formato e da tiragem dos jornais impressos será, também, uma resposta às restrições ambientais – como ocorreu com o abandono do filme na fotografia em massa. Não só pelo papel, mas pela energia que gastamos rodando e distribuindo jornais. Estamos mudando de setor, deixando de ser indústria para ser serviço. E aqui não há como discordar de Sulzberger: nosso negócio é a informação, não aquelas enormes rotativas que vêm de navio da Europa nem aquelas enormes bobinas de papel canadense. Vamos tirar dos ombros o pesado fardo do deadline, que não é senão uma exigência industrial: temos de parar de apurar, escrever, fotografar, ‘infografar’ e editar para as máquinas poderem rodar e os caminhões levar o que fizemos. Estaremos melhor, não há dúvida. Desde que tenhamos equipe suficiente para descansar de vez em quando, claro…
A maior vantagem competitiva dos jornais é organizar a barafunda de informações disponíveis no dia-a-dia, dar-lhes nexo, profundidade e sentido. Você escreve em seu livro: ‘Aquilo que o jornal pode fazer melhor são histórias bem contadas, com contextualização, interpretação, análise e opinião. Mas ele está longe de ter atingido o ponto ótimo nessas tarefas. Na verdade, o jornal ainda está muito mais estruturado para contar `o quê´ do que para explicar `por quê´’ (pág. 184). O que falta aos jornais para superar essa limitação crítica?
L.S. – Falta, em primeiro lugar, nós nos convencermos de que esse é o caminho. Essa é uma discussão que, quando muito, apenas começou nas redações e em suas chefias. E não é simples fazer essa transição. Corremos o risco de perder o que temos e de não ganhar o que aspiramos. Mas vamos precisar de outros profissionais. Os que temos estão treinados para relatar fatos e transcrever declarações. O que você prefere: ouvir o presidente Lula falando ou ler suas declarações? Assistir aos melhores lances de uma partida ou ler sobre eles? Pois é. Ou contextualizamos, interpretamos, analisamos e narramos de forma prazerosa, ou vamos desaparecer. Nossos leitores têm rádio, TV e acesso à internet. E continuamos fazendo jornal como se eles não tivessem nada disso. Ainda contamos com sua fidelidade e seu hábito. Isso não é eterno.
Mas, voltando: precisamos de jornalistas que não só apurem o fato – sim, vamos continuar apurando o fato – mas também levantem as suas implicações políticas, econômicas, sociais, históricas, culturais etc. Teremos um pouco mais de tempo para fazer isso. Não vamos tratar de todos os assuntos todos os dias. A cada dia, selecionaremos alguns temas para tratar. E o faremos com muito mais qualidade, precisão, contexto e prazer de leitura. Então, precisaremos de profissionais especializados e também de profissionais multidisciplinares, que façam conexões entre áreas diferentes do conhecimento. O mundo não está dividido em setores. Tudo está interligado. E a velocidade das conexões está se acelerando. A universidade terá de nos entregar jovens mais preparados, e as empresas e os próprios profissionais terão de investir ainda mais na sua formação.
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