Faltou espaço, faltou matéria (além do tsunami) e, quando isso acontece, despencam os níveis de exigência, de vigilância e apuro. Neste vácuo de dez dias antes do Natal até depois do Ano Novo, o Estado de S.Paulo exibiu candidamente suas gavetas vazias [veja a matéria ‘Ondas gigantes, redações vazias’ na rubrica Imprensa em Questão, nesta edição).
Ao mesmo tempo, abriu as portas às impetuosas legiões da Opus Dei.
Na edição de segunda-feira (3/1), sem qualquer pudor, entregou sua prestigiosa Página Dois, inteirinha, à Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra – que, como sabemos, é a jóia da coroa da Opus Dei.
Ao lado do habitué Carlos Alberto di Franco, representante comercial e ideológico desta corporação religiosa, caiu de pára-quedas o próprio diretor da famigerada Faculdade de Comunicação, Alfonso Sánchez-Tabernero.
Quase uma página inteira de platitudes e lugares-comuns sobre jornalismo que comprometem o acervo conceitual de um jornal que está completando não apenas gloriosos 130 anos de existência, mas uma incontestável liderança no campo das idéias e da cultura.
Com esta página impressa porém vazia, o Estadão admitiu abertamente que estava de folga e que não tinha artigos de reserva ou articulistas de plantão. A página de opinião da sociedade saiu chocha, manca – e, o que é mais grave, parcial, portanto suspeita.
Porção comprovada
Coincidência ou não, poucos dias antes, na edição de sexta (31/12), num caderno especial com a retrospectiva de 2004, o jornal abriu enorme espaço para desancar o romance best-seller Código da Vinci do americano Dan Brown. Título: ‘Bush escreveu ‘O Código da Vinci’’. Com a chancela respeitável do jornalista Mario Sergio Conti (ex-diretor da Veja e do Jornal do Brasil, autor do livro-reportagem Notícias do Planalto), o texto desmonta minuciosamente as licenças ficcionais do best-seller.
Parabéns: até agora ninguém o fizera na imprensa brasileira. Mas o besteirol histórico de Dan Brown não é novo: a bibliografia literária em torno do Nazareno é tão grande quanto o imaginário fabricado pelas lendas dos templários e outras seitas secretas.
As ‘revelações’ do livro são irrelevantes, mesmo para os milhões que o devoraram e têm o mínimo de discernimento. Mas não são irrelevantes para as congregações e ordens fundamentalistas cristãs, entre as quais ocupa um lugar de destaque a Opus Dei.
É justamente no tocante à Opus Dei que o livro tem enorme importância factual porque o ficcionista deu lugar a um competente coletor de informações. E, graças a isso, temos, pela primeira vez, uma tomografia razoavelmente precisa a respeito das maquinações e do poder da Opus Dei não apenas no mundo ibérico, mas, principalmente, nos Estados Unidos.
Apesar deste acervo factual, as duas menções à Opus Dei na resenha do Estadão não chegam a ocupar duas linhas. Uma delas quase elogiosa. Muito menor do que a furiosa diatribe contra o fundamentalismo judeu, que nada tem a ver com o livro.
Espanta que a detalhada exegese de uma obra de ficção tenha passado ostensivamente ao largo da sua única porção contemporânea, real e comprovada. Um jornalista do porte de Mario Sergio Conti não cometeria essa desatenção.
Mais fácil supor um transbordamento do clima conspiratório do livro, através do qual misteriosa mão teria acionado a tecla ‘delete’ nas referências sobre a Opus Dei.