Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os fatos, ora os fatos

Estamos comemorando o aniversário da maior cidade italiana depois de Roma, da maior cidade japonesa fora do Japão, da maior cidade nordestina do Brasil. A cidade que é chamada de bairrista e elitista, mas teve entre seus prefeitos dois negros, uma nordestina, um matogrossense, dois fluminenses, um filho e um neto de imigrantes libaneses. É a capital de um estado que colocou como seus representantes na Presidência da República dois fluminenses, um pernambucano e um matogrossense. Que, entre os diversos ditadores que assolaram o país, pode orgulhar-se de dizer que nenhum nela nasceu, nem cresceu, nem se familiarizou com sua vida.

E, no entanto, boa parte da imprensa diz que São Paulo é uma cidade preconceituosa, capital de um estado preconceituoso. Sempre há, nas mentiras, um toque de verdade: os paulistas costumam chamar todos os nordestinos de ‘baianos’ (já os cariocas sempre preferiram chamá-los de ‘paraíbas’). Adhemar de Barros usou a origem matogrossense de Jânio Quadros para torpedear sua candidatura, mas Jânio venceu a eleição. Orestes Quércia era conhecido como ‘calabrês’, Mário Covas como ‘espanhol’, Maluf como ‘turco’, mas todos eles foram vitoriosos nas urnas.

Uma das coisas mais impressionantes, entre muitos jornalistas, é a falta de informações sobre São Paulo.

Há muitos anos, quando o Rio comemorou 400 anos, o governador Carlos Lacerda mandou fazer um imenso bolo de aniversário. Um garoto de São Paulo escreveu a Lacerda, pedindo que lhe enviasse um pedaço do bolo. Lacerda, excelente marqueteiro, preferiu mandar ao garoto três passagens para o Rio – ele, o pai e a mãe comeriam o bolo pessoalmente, a seu lado. Um jornal carioca mandou a pauta para a sucursal paulistana, dando o endereço do menino, na rua Duque de Caxias. Na cidade de São Paulo havia na época cinco endereços possíveis, entre ruas, avenidas, praças e largos. E nada do garoto.

Houve as piadas de praxe (‘desculpe termos mandado poucas informações, só o nome e o endereço, da próxima vez mandamos também a foto’) e, no dia seguinte, veio no próprio jornal a informação completa: o garoto morava em Amparo, a 125 km da capital. O pauteiro era jornalista dos bons, mas não sabia que São Paulo tinha mais de 500 municípios, alguns a centenas de quilômetros da capital, todos com rua, praça e avenida Duque de Caxias.

Um repórter nordestino trabalhou por muitos anos em São Paulo. Certo dia, viajou para Ribeirão Preto. Voltou impressionadíssimo: pensou que o interior fosse uma região agreste, e encontrou uma área riquíssima da qual não suspeitava, com agricultura próspera, indústria, comércio ativo. Era outro mundo.

Certa vez, Juscelino Kubitschek se queixou a Ulysses Guimarães de que São Paulo só gerava monstros políticos. Mas o próprio Ulysses não foi um monstro político. Foram políticos paulistas como ele, como Franco Montoro, como Olavo Setúbal, como Antônio Ermírio, que desistiram de seus sonhos presidenciais para juntar forças em volta do mineiro Tancredo Neves.

Cabe aos meios de comunicação buscar mais informação e exibir menos preconceito. A campanha divisionista, preconceituosa, que fez parte da luta pela presidência, não é boa para ninguém e é péssima para o país. Não há vitória eleitoral que valha a estupidez do preconceito antipaulista. E que melhor ocasião do que o 457º aniversário da cidade criada pelo cacique Tibiriçá, pelos três notáveis jesuítas Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e Manoel de Paiva, pelo judeu João Ramalho e sua mulher, a índia Bartira, filha de Tibiriçá, para lembrar à imprensa que este país é um melting pot que só tem sentido se recusar preconceitos?

 

Invasão de privacidade

Uma ampla matéria, num grande jornal, revela os salários de alguns dos principais apresentadores de programas policiais na TV. Erradíssimo: salário, exceto em casos específicos, definidos em lei, é tema de interesse exclusivo das partes. A menos que as partes considerem que é bom divulgar os valores, os valores não têm por que ser divulgados – entre outros motivos, porque ninguém tem nada com isso. A informação não tem relevância.

Fora isso, há o problema do risco: por que expor pessoas que não pediram para ser expostas, que não têm motivo para ser expostas? Não: a menos que a violação da intimidade das pessoas seja essencial ao interesse público, violá-la é inaceitável.

 

Um esforcinho!

O tema já foi tratado tantas vezes nesta coluna que está ficando até chato. Mas há ocasiões em que não é possível ignorar os erros de regência: as frases vão ficando difíceis, o entendimento é prejudicado, e uma das funções da imprensa – contribuir para o crescimento cultural de seus leitores – é esquecida.

Vejamos o texto de um grande jornal, daqueles em que muita gente aprendeu a ler (e, portanto, a escrever):

** ‘(Fulano de tal) (…) afirma que não o bateu com arma de fogo’.

Não é tão difícil, gente! O Manual de Redação ensina direitinho. É só consultá-lo. O equívoco oposto, de usar ‘lhe’ no lugar de ‘o’, é bem mais compreensível: em boa parte do país, usa-se coloquialmente o ‘lhe’ em vez do ‘o’. Construções como ‘vou encontrar-lhe em tal lugar’, pela frequência com que são usadas, acabam se tornando familiares. Mas ‘não o bateu’ não é usado em lugar nenhum, a não ser em páginas de jornais e revistas. Por quê?

Talvez pelo mesmo motivo que leva um professor universitário, daqueles com armários cheios de diplomas nacionais e estrangeiros, a escrever num grande jornal a expressão ‘mal comportamento’. Eta, professor-doutor ‘mau asçeçorado’!

 

É gostoso, é fácil.

Não, não é hora de discutir norma culta, linguagem coloquial, jargão. O problema é escrever de maneira clara, precisa, concisa; é, mesmo violando aqui e ali as normas gramaticais, garantir que o texto seja compreensível e agradável. E há uma maneira infalível, simples e prazerosa de aprender a escrever bem: é ler muito. Ler tudo – autores consagrados, histórias em quadrinhos, Carlos Zéfiro, histórias descartáveis, daquelas que a gente lê no avião para passar o tempo e acaba deixando o livro por lá para não ter de carregá-lo. Histórias em quadrinhos, por exemplo, são ótimas para aprimorar a concisão do texto: ali se narra uma história em pouquíssimas palavras (que têm de caber nos balões), se bem que ajudadas pelos desenhos. Mas que é hoje a comunicação multimídia, senão palavras ajudadas por filmes, desenhos, ilustrações?

 

Aprender com prazer

Um ótimo lugar para ler com satisfação (até quem tem azia ao manusear jornais e usa livros para colorir) é o http://fernandoportela.wordpress.com/, de um esplêndido jornalista, executivo, escritor – o adjetivo ‘esplêndido’ se aplica aos três substantivos. Fernando Portela, pernambucano que migrou para São Paulo para integrar uma das mais brilhantes equipes já formadas na imprensa, a do Jornal da Tarde, escreve muito, muito bem, e é reconhecido, ao mesmo tempo, por seus comentários cortantes. Há quem diga que escova os dentes do Instituto Butantan e jamais mostra a língua para alguém, não por educação, mas para que não percebam que tem duas pontas. Portela vive num ambiente literário: sua mulher, Miriam, e sua filha, Mariana, são escritoras de ótima qualidade. E, desde que decidiu reduzir sua carga de trabalho no dia-a-dia, Portela se dedicou mais àquilo de que realmente gosta, criar histórias. São histórias curtas, gostosas, muito bem escritas; este colunista não perde oportunidade de acompanhá-las.

O blog de Portela também é leitura constante de um papa do jornalismo, Ricardo A. Setti, que fez de tudo na imprensa: foi repórter, cobriu política e economia, integrou a magnífica equipe do Jornal da Tarde, dirigiu revista de mulher pelada (foi a melhor fase da Playboy, confirmada pelos números de vendas), convenceu a filha de Fidel Castro a posar nua. Setti comanda hoje um blog em que mostra que é possível ter um pensamento original sobre os fatos. Setti sabe também que o jornalismo só vai melhorar quando mais jornalistas estiverem se dedicando à leitura. Recomenda especialmente o blog de Portela. E não tenha a menor dúvida, caro leitor: Ricardo Setti sabe o que diz.

 

Leitura e literatura

Um livro que vale a pena: Jornalismo Literário para Iniciantes, de um velho colega deste colunista, Edvaldo Pereira Lima, dirigente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário. Não se trata, é importante notar, de jornalismo sobre literatura, e sim de jornalismo como gênero literário, algo que existe no Brasil desde Euclides da Cunha – Os Sertões foi uma série de reportagens para O Estado de S.Paulo – e passou por Realidade, pelo Jornal da Tarde, onde se destacava Marcos Faerman, por livros-reportagem. É o que fazem autores como Tom Wolfe e Gay Talese, sempre gente de primeiro time.

O livro não está nas livrarias: busque o Clube dos Autores. Feita a encomenda, o exemplar é impresso e enviado por Sedex.

 

Como…

Do portal noticioso de um grande jornal:

** ‘Lula vai visitar Alencar’

Tudo bem com o título – exceto o tempo. Segundo o texto da mesma notícia, ‘o ex-presidente já foi visitar o doente’.

Dizem que um jogador famoso, explicando um lance em que avançou sozinho e fez o gol, livre de marcação, disse: ‘Eu fui, fui, fui, e acabei fondo’. Um dia a gente chega lá.

 

…é…

Do portal noticioso de um jornal de grande circulação:

** ‘Refúgio paraguaio para bandidos’

Este é o título. Agora, o texto:

‘Prefeitura lança licitação dos trajetos municipais (…)’

 

…mesmo?

Do portal de notícias de um jornal de grande circulação, fazendo previsões sobre ‘Como será o amanhã’ e comentando ‘The Big One’, o devastador terremoto provocado pela Falha de San Andrés, que um dia, dizem os pessimistas, poderá devastar a região mais rica dos Estados Unidos:

** ‘Tremor de terra abala Califórnia’

Isto no título. No texto: ‘Famoso cientista americano afirma que, daqui a dez anos, será possível comer sem engordar’.

 

Mundo, mundo

A história é esquisitíssima (e tem tudo para acabar mal). Dá-se que um pescador, na Costa Rica, notou que um crocodilo tinha uma bala na mandíbula. Aproximou-se, foi bem recebido e retirou a bala. Agora, virou amigo do crocodilo, a tal ponto que deixou a pesca e hoje é showman, apresentando-se para turistas. Ele e o crocodilo se beijam, lutam, e o crocodilo parece gostar.

Mas há a parte do texto jornalístico explícito: segundo um grande portal noticioso, dá para ver o crocodilo e seu amigo ‘emergindo sob a água’. Isto é incomum: quem fica sob a água imerge. Quem emerge fica sobre a água. Será que a história do crocodilo e de seu amigo não se baseia também em texto errado?

 

E eu com isso?

Muita tragédia, muita morte, muita dor, muita destruição. Chega!

** ‘Arnold Schwarzenegger pedala na Califórnia’

** ‘Orlando Bloom aparece com suposta dor na coluna’

** ‘Após Passione, Mayana Moura exibe novo visual’

** ‘Em entrevista, Liam Gallagher diz que fã cheirou sua caspa’

Tudo bem – mas terá ficado muitcho doidjo ao cheirar essa caspinha?

** ‘Onda de mulheres grávidas atinge Hollywood’

** ‘Geisy Arruda diz no twitter que está grávida do namorado’

** ‘Produtor francês defende democratização do caviar’

** ‘Pai de Lucival não sabia que brother era gay’

** ‘Natalie Portman não quer ser vista como ‘baleia’’

** ‘Avril Lavigne sai com sapato ousado’

 

O grande título

Nesta semana, dois títulos notáveis: os erros de grafia exigem um esforço maior para entendê-los.

** ‘Criança observa casas destruídas peças chuvas em Teresópolis, no Rio’

Este é tranquilo: ‘pelas’, e não ‘peças’.

** ‘General Aníbal de Cartago entrou para a História, mas perdeu o troco’

Aníbal atacou Roma e chegou a colocá-la em perigo. Mas a longa ofensiva, tão distante de sua base de suprimentos, desgastou suas tropas. Quando teve de voltar a Cartago (na região em que hoje é o Líbano) para repelir um ataque romano, acabou vencido por Cipião, o Africano. E perdeu não o troco, mas o trono.

Já o grande título é um clássico: certamente tem sentido, embora não para o público em geral.

** ‘Ibovespa vai honrar dívida de crescimento em 2011, diz Planner’

Alguém deve entender do que se trata.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados