Jornalista é muito bonzinho. Se o dinheiro público é desviado escandalosamente, a imprensa acompanha o caso (ao menos por algum tempo, antes que outro evento tire o foco do anterior). Mas, se há certa discrição ao jogar o dinheiro público pelo ralo, os meios de comunicação costumam deixar para lá.
O caso do desembargador Jovaldo dos Santos Aguiar, que foi corregedor-geral da Justiça no Amazonas, é exemplar (e, talvez por falha no acompanhamento do noticiário, este colunista quase nada viu sobre ele). Aguiar é acusado de beneficiar amigos em casos judiciais nos quais deveria declarar-se suspeito, de não cumprir as obrigações do cargo de corregedor, de vender sentenças a preços populares (segundo dizem, R$ 30 mil já garantiam a boa vontade do meritíssimo). O desembargador foi apanhado e, devido às acusações de corrupção, aposentado compulsoriamente. Isso significa que foi condenado a receber R$ 26.300 mensais, o mesmo que recebia como desembargador, só que sem trabalhar.
E que ninguém se queixe: está na lei, a Loman – Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Diz a Constituição que o desembargador Jovaldo dos Santos Aguiar é igualzinho, perante a lei, ao caro leitor. Diz a lei que ele é mais igual do que nós e tem o direito, quando eventuais malfeitos são descobertos, de ganhar sem trabalhar.
Ele e mais quantos? Se um cidadão comum dirigir um carro em excesso de velocidade, bêbado, na contramão, e matar uma família inteira no acidente que provocou, o que lhe acontecerá? Com um promotor, aconteceu que ele foi promovido de seu cargo no interior para uma disputadíssima vaga na capital. Se um cidadão comum tiver uma arma ilegal e usá-la em legítima defesa, vai ter de explicar-se perante a Justiça por posse da arma ilegal. O promotor que usou uma arma ilegal em legítima defesa teve a arma ilegal convenientemente esquecida. O promotor que matou a esposa grávida foi condenado e fugiu (acabou preso, finalmente, há pouco tempo), recebeu seu salário regularmente, por anos, mesmo sem trabalhar, mesmo estando condenado, mesmo estando foragido.
Há desembargadores que têm direito a dois carros pessoais. Um já seria discutível, considerando-se que o meritíssimo vai ao tribunal e volta, e poderia perfeitamente fazê-lo em um luxuoso táxi especial, com todo o conforto e gastando muito menos. Mas, dois? Como é que se pode usar dois carros em serviço, ao mesmo tempo?
Nesses casos há duas faces (e nossos meios de comunicação não têm tratado de nenhuma das duas): primeiro, o tratamento privilegiado oferecido a determinados grupos profissionais; segundo, o uso de dinheiro público, do seu, do meu, do nosso dinheiro, para manter esse tratamento privilegiado.
A democracia, para usar os termos anglo-saxônicos, se baseia em checks and balances. Há supervisão, há contrapesos, ninguém está fora do alcance da lei. Mas como fazer isso num país em que determinadas categorias profissionais não têm controle externo, gente de fora que supervisione seu trabalho nem possa confrontá-las?
Tudo em família
Já que abrimos esta coluna falando em jornalistas bonzinhos, vale a pena dar uma notícia que foi bem pouco divulgada – aliás, este colunista só a viu no Blog do Mércio – Índios, Antropologia, Cultura.
Acontece que na nova direção da Funai, dirigida por Márcio Meira, o presidente, a chefe de gabinete, o presidente substituto, a chefe de gabinete do diretor de assistência, a diretora de administração, a coordenadora geral de pessoal são, todos, de Belém do Pará. E haja parentesco! A chefe de gabinete do presidente, Maria Salete Miranda, é irmã da chefe de gabinete do diretor de assistência e prima da assessora do gabinete. O coordenador de apoio logístico é marido da chefe de gabinete. O chefe do serviço de telecomunicações é pai do coordenador regional de Maceió. O estagiário é filho da diretora. E o coordenador técnico dos Fulniô (a tribo da qual descende o lendário ponta Garrincha, do Botafogo, do Corinthians e da seleção) é filho da professora subordinada a ele.
Alô, colegas jornalistas! É uma pauta boa, essa. E não é difícil de fazer, não: o Mércio Gomes, do Blog do Mércio, foi presidente da Funai até recentemente. Conhece tudo sobre o assunto.
Guerra suja
Circula amplamente pela internet um relato sobre a bomba que, há pouco mais de 40 anos, foi lançada no consulado americano em São Paulo, arrancando a perna de um cavalheiro, Orlando Lovecchio, que não tinha nada com a briga e deu o azar de estar no lugar errado na hora errada. Lovecchio recebe uma pensão vitalícia de pouco mais de um salário mínimo; as pessoas que lançaram a bomba recebem porções bem mais generosas de dinheiro público.
O objetivo do relato da internet é dizer que Dilma Rousseff, hoje candidata à Presidência da República pelo PT, era uma das integrantes do grupo de bombardeadores. Seu codinome seria ‘Dulce Maia’.
A história, excetuando-se a bomba que arrancou a perna de Lovecchio, é falsa. A lista está errada: quem a forneceu, sob tortura, sabia que Dulce Maia estava em segurança, fora do país, e por isso incluiu seu nome entre os membros do grupo. E Dulce Maia é Dulce Maia, jamais foi codinome de ninguém: é filha do publicitário Carlito Maia, participou de ações armadas, e hoje vive em Cunha (SP), cuidando de plantas. Seu pseudônimo, se não falha a memória deste colunista, era ‘Judith’. Dilma tinha como codinomes ‘Vanda’, ‘Vilma’ e ‘Estela’, e não teve qualquer participação no caso Lovecchio.
Muita gente que conhece Dilma lhe atribui uma quantidade imensa de defeitos. OK: em campanha, que esses defeitos sejam citados, difundidos, discutidos. Mas ela já os tem em quantidade suficiente, não é preciso inventar outros.
Sem fantasia
Eleição é uma forma de guerra. É mais civilizada, porque substitui a força bruta pela conquista do eleitorado, mas seu objetivo é o mesmo: derrotar o adversário e conquistar o poder. O senador americano Hiram Johnson costumava dizer que, em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade. Cabe aos meios de comunicação, agora mais do que nunca, vigiar as informações que circulam, para checá-las, confirmá-las, desmenti-las. Um bom trabalho da imprensa é essencial para que as eleições sejam corretas, limpas, livres de fraudes na medida do possível. E para evitar que reputações sejam assassinadas no altar das urnas.
Olha o racismo!
O espaço destinado a comentários em portais da internet é extremamente revelador: já que as empresas que editam os portais não querem gastar muito dinheiro com a moderação, saem coisas de arrepiar. E mostram que, apesar de tudo, o racismo continua vivo e operante (e não apenas no Brasil: este colunista acaba de receber um e-mail com fotos de organizações nazistas americanas em ação que dão vergonha do ser humano. Com um detalhe extra: os americanos foram à guerra contra os nazistas, e mesmo assim o nazismo sobrevive lá dentro).
Mas vamos a duas publicações respeitadas e seus comentários. No Portal Exame, Frank diz:
‘Não confio em espanhóis’.
No portal www.estadao.com.br, Paulo Souza Brito, a pretexto de criticar Israel, diz:
‘Temos que expulsar esses judeus daqui’.
Mau sinal
O CQC, da Rede Bandeirantes, teve uma idéia ótima: doou uma TV em excelente estado a uma escola municipal de Barueri (SP). Dentro da TV, colocou um GPS, para localizá-la, e uma sirene. Alguns dias depois, pelo GPS, achou a TV na casa da diretora da escola. Tocou a campainha e um empregado da casa tentou levar a TV embora – e foi engraçadíssimo, já que o pessoal do programa ficou tocando a sirene. Maravilha!
Não, não foi uma maravilha: a prefeitura pediu à Vara da Fazenda de Barueri que embargasse o programa, já que não tinha tido direito de resposta. Direito de resposta a que, cara pálida? E como responder se o programa nem tinha ido ao ar? Depois de alguns dias, a prefeitura desistiu da censura. Mas ficou claro que, especialmente neste ano eleitoral, a censura continua existindo, sim, embora seja proibida pela Constituição.
E que deveriam fazer a diretora da escola, a Prefeitura, sabe-se lá quem se julgasse ofendido pela reportagem? Simples: processar o CQC e a Rede Bandeirantes. Está certo que, no caso, ia ficar ainda mais engraçado. Mas a lei maior do país estaria sendo obedecida.
Sem roupa
Na semana passada, este colunista defendeu a subprefeita paulistana Soninha Francine, a quem não conhece pessoalmente, da sanha moralista com fundo político que pretendia crucificá-la por ter posado nua (se há críticas, deveriam vir do outro lado: Soninha posou nua, mas as fotos não mostraram nada). Dos comentários à coluna, dois tipos me chamaram a atenção:
1.
Os que reivindicavam liberdade para criticar a opção de Soninha de posar nua. OK, quem não gosta de mulher pelada tem todo o direito a essa liberdade de crítica. E este colunista está disposto a colaborar com as Senhoras e Senhores de Santana: se pedirem por e-mail, receberão o endereço da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, ou, caso prefiram, de outra organização dedicada à preservação da moral e dos bons costumes.2.
Os que criticavam o colunista por não defender a primeira-dama Mariza Letícia Lula da Silva. Defender de quê? Qual a acusação? Qual história falsa sobre ela estaria sendo difundida e que mereceria desmentido? Este colunista não viu nada a esse respeito.
Os recórteres
Em colunas anteriores, este colunista comentou jornais que insistem em dar, como novidades, notícias que já foram amplamente divulgadas por outros meios de comunicação. O grande Wilson Palhares, jornalista de boa cepa, lembra o caso contrário: o dos meios instantâneos de comunicação que se limitam a reproduzir o noticiário dos jornais. Há programas de rádio que são pura recortagem: não há mudança em uma palavra sequer do que saiu no jornal.
Veja só: a notícia acontece na quarta, o jornal a publica na quinta de madrugada, e durante toda a quinta há emissoras de rádio, teoricamente muito mais velozes do que qualquer jornal, repetindo os fatos velhos. Para a emissora, é mais barato comprar o jornal do que botar o repórter no caso. Para o ouvinte, é mais conveniente mudar de estação o mais rápido possível.
Como…
De um grande jornal, que noticiava no título o crescimento do emprego na indústria:
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‘As horas vagas vêm registrando diminuição há 15 meses, segundo observou Macedo. Para ele, a variação negativa de 0,3% apurada nesse indicador em janeiro ante dezembro `é uma acomodação natural depois de crescimentos sucessivos´. Ante mês anterior, as horas pagas registravam resultados positivos há sete meses’.O texto, escrito numa língua que certamente o redator pensa que é português, diz em suma que a economia cresceu, mas diminuiu, e que caiu 15 meses, dos quais subiu em sete.
Como diria aquele craque cuja maior frustração foi jamais conseguir jogar no Corinthians, ‘entendje’?
…é…
De um grande portal, referindo-se ao jogo entre Corinthians e Santo André:
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‘Ronaldo arranca em velocidade, passa pela marcação, penetra a área e bate forte. Júlio César espalma com os pés (…)’E o ótimo goleiro do Santo André certamente repôs a bola em jogo dando um chute com as mãos.
…mesmo?
De um jornal especializado:
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‘Mulher casada investe mais em ativos de risco do que quando está solteira’Os passivos sem risco parece que estão fora desse mercado.
E eu com isso?
A tecnologia avança:
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‘Para produzir mais leite, vacas da Rússia ganham TVs com tecnologia LED’**
‘Viciados em redes sociais atualizam perfil até no banheiro’**
‘Jovem pode ser presa por ter feito sexo por telefone com detentos’Detentos, aliás, estão na moda.
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‘Preso galã ganha favores sexuais após conquistar cinco carcereiras’**
‘Americana é presa após oferecer favores sexuais em troca de doce’**
‘Americano invade casa, assiste nu à TV e acaba preso’O nudismo também está em alta.
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‘Grupo de pelados anda em montanha-russa no Reino Unido’**
‘Homem mostra o bumbum para Lily Allen em Manchester’E, naturalmente, não falta sexo.
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‘Polícia aponta lanterna e casal segue fazendo sexo’Aconteceu em Orangebourg, na Carolina do Sul, EUA. E o rapaz ainda aproveitou os últimos momentos de liberdade para fumar um cigarrinho.
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‘Casal que fazia sexo em carro ligado dentro de garagem morre em Moscou’**
‘Bordel pega fogo e homem sai pelado pela janela do 4º andar’O melhor de tudo foi a explicação do cavalheiro: disse que tinha ido ao bordel para visitar um amigo.
O grande título
Há fartura para escolher. Alguns títulos têm a Síndrome de Herbie, o Fusca Falante: atribuem qualidades humanas a veículos.
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‘Três são presos por apedrejar veículos em greve’Mas parece que, após duras negociações, os veículos paredistas voltaram ao trabalho.
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‘Ônibus do Inter é apedrejado e fere Taison em Quito’O ônibus não teve má intenção: é que, apedrejado, perdeu a cabeça e atingiu o craque.
Há também títulos especialmente chamativos, especialmente se colocados no contexto.
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‘Adolescente é preso nos EUA acusado de roubar um par de chifres’O que é a diferença de hábitos! Quem aqui, desejaria roubar chifres? Aliás, se há gente com tanta vontade de fantasiar-se de viking, para que roubá-los, existindo uma maneira não-ilegal de adquiri-los?
E, na mesma linha, um título magnífico:
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‘Estudantes apresentam programa nus e provocam polêmica na Inglaterra’O vídeo foi feito para a TV da Cambridge University, cujo nome oficial, e adequadíssimo ao caso, é CU:TV.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados