Uma das funções da imprensa é transformar a linguagem acadêmica em linguagem acessível àqueles que não pertencem à academia. O jornalista teria a função, entre outras, de ser a ponte entre o saber acadêmico e a população dita comum, levando este saber acadêmico a essa população com uma linguagem dita mais acessível. Dá certo? Nos livros de história, sim. Basta notar o sucesso estrondoso que livros de história escritos por jornalistas tem feito no Brasil. Mas, na minha opinião, esta ponte está falhando em outros casos, como, por exemplo, na crise financeira internacional.
A crise financeira persiste deixando atônita a população, principalmente aqueles que estão longe das discussões acadêmicas sobre ela, ou seja, a imensa maioria das pessoas, aquelas pouco afeitas a explicações ou filosofias mais profundas. Essas seguem as explicações dos jornais e da televisão aparentemente sem saber muito bem o que ocorre na realidade. Os jornais, que deveriam ser a ponte, até tentam fazer o seu trabalho, mas esbarram em um erro que muitos jornalistas cometem – sem querer, deixemos claro: a investigação das causas, principalmente. Alguém se lembra como a crise começou? Pior: alguém se lembra onde ela começou?
Vamos refrescar a memória dos mais esquecidos. Vou ser aqui a ponte, por enquanto. Fannie Mae e Freddie Mac. Com certeza você se lembrou. Estas são aquelas duas financeiras, especializadas em conceder hipotecas à população, onde a crise nasceu.. Como elas atuavam? Deixando o linguajar acadêmico de lado, elas revendiam, em forma de títulos, empréstimos feitos pelos bancos (do mundo inteiro, diga-se, daí a crise ter se espalhado para todos os bancos do planeta) a financiadoras que, por conseguinte, emprestavam aos chamados mutuários, àqueles que queriam comprar sua casa própria e pagariam este empréstimo em suaves prestações. A crise explodiu quando estes mutuários deixaram de pagar seus empréstimos, pura e simplesmente, depois do aumento dos juros nos Estados Unidos que aumentou o valor das prestações. A maioria dos mutuários não tinha a menor condição de receber estes empréstimos. Mas por que, então, receberam?
Contabilidade, relatórios e governança
Três livros escritos nos Estados Unidos, tendo a Fannie Mae e a Freddie Mac como personagens principais, podem dar mais luz ao fato. O primeiro, editado pelo jornalista James R. Cristie, com o título Fannie Mae And Freddie MAC: Scandal in U.S. Housing, traduzindo vulgarmente, Fannie Mae e Freddie Mac: Escândalo na Habitação dos Estados Unidos. O livro foi publicado em 2006 quando a crise financeira nem era cogitada a não ser por alguns pouquíssimos especialistas. O que diz o livro? Vou resumir:
No final dos anos 1980 e 1990, a Fannie Mae cresceu rapidamente, tornando-se a maior empresa em habitação dos Estados Unidos, atuando no sistema financeiro global e tornando-se uma grande instituição financeira. A empresa alcançou crescimento de dois dígitos em seus lucros por ação ordinária (EPS) para 15 anos e alavancando seu extraordinário sucesso financeiro em uma enorme influência política. Esse sucesso financeiro e político deu lugar a uma cultura corporativa na Fannie Mae sênior de gestão, o que fez a empresa ser promovida como uma de mais baixo risco entre as instituições financeiras em todo o mundo e como ‘melhores da classe’ em termos de gestão de riscos, relatórios financeiros, controles internos e governança corporativa. Este livro descreve o desenvolvimento e a extensão dos problemas com a Fannie Mae, sua contabilidade política, controles internos, relatórios financeiros e de governança corporativa. O livro também recomenda que sejam tomadas medidas para reforçar o objetivo de manter a segurança e solidez da Fannie Mae.
Mercado privado de hipotecas
Vamos a outro livro. Escrito por Peter J. Wallison, um consultor financeiro que fez neste caso um papel de jornalista, tem o título Privatizing Fannie Mae, Freddie Mac and the Federal Home Loan Banks: Why and How, traduzido, Privatizar Fannie Mae, Freddie Mac e a Federal Home Loan Banks: Por que e Como.
Este livro é ainda mais antigo, publicado em 2004. O que ele diz? Resumo de novo:
Muitas pessoas querem criar regulamentos federais que regem o patrocínio do governo a empresas GSEs – Fannie Mae, Freddie Mac, e o Federal Home Loan Banks (esta última empresa atuava como a Fannie Mae e a Freddie Mac, mas em menor escala). Mas uma melhor regulamentação não irá fazer muito para reduzir os riscos reais que as GSEs criam para os contribuintes dos Estados Unidos e para sua economia e não são susceptíveis de ter força real. Fannie e Freddie são as mais poderosas empresas políticas nos Estados Unidos. Estas empresas podem intimidar reguladores e repelir regulamentos, mas os opositores da privatização acreditam que a Fannie Mae e a Freddie Mac seriam ainda mais poderosas como entidades privatizadas. Fannie e Freddie seriam capazes de obter financiamento melhor do que os seus concorrentes, de acordo com esta linha de pensamento. Preocupações foram também levantadas sobre se a privatização da Fannie e da Freddie iria perturbar o financiamento do mercado residencial ou aumentar as taxas hipotecárias para os compradores de casas.
O plano deste livro é justamente abordar essas preocupações. Thomas H. Stanton demonstra que é possível cortar os laços entre o governo e as GSEs para criar um mercado totalmente competitivo privado de hipotecas sem perturbar o atual sistema de financiamento residencial hipotecário. O consultor financeiro Bert Ely mostra que seria possível obter mais baixas taxas hipotecárias que aquelas atualmente oferecidas pela Fannie e Freddie sem qualquer envolvimento governamental. O livro apresenta uma proposta legislativa para aprovar estes planos, juntamente com uma sessão pormenorizada explicando esta proposta de lei.
As mais poderosas empresas políticas
Mais outro livro, escrito pelo mesmo Peter J. Wallison, Serving Two Masters, Yet Out of Control: Fannie Mae and Freddie Mac, cuja tradução livre é Servindo a dois senhores, ainda fora de controle: Fannie Mae e Freddie Mac. Este é mais antigo ainda. Escrito em 2001. O que ele diz? Vamos resumir:
Fannie Mae e Freddie Mac, patrocinadas pelo governo, devem cumprir dois papéis, em última instância irreconciliáveis. Como sociedades de capitais públicos, devem maximizar rentabilidade para seus acionistas, mas, como quase agências governamentais, devem utilizar os seus enormes, implícitos, subsídios governamentais em apoio do seu público. Na realidade, elas dividem a diferença, uma vez que transferem uma grande parte do seu subsídio aos seus acionistas. Ao mesmo tempo, o Congresso não escrutina regularmente a Fannie e Freddie, apesar do seu enorme tamanho e importância. As duas são claramente demasiado grandes e poderosas para que pequenas agências cobrem do Congresso a sua vigilância. Assim, ao tentar servir a dois senhores, Fannie e Freddie estão literalmente fora de controle.
A privatização iria resolver o dilema público e privado? Se não, quais outras opções existem? Em onze redações, figuras públicas, economistas e funcionários do governo mostram o que permitiu que as duas agências crescessem a esta dimensão sem precedentes, recebessem extraordinária rentabilidade e alcançassem incomparável influência sobre o processo político.
Interessante e grave o que estes livros dizem. Eles revelam como a Fannie Mae e a Freddie Mac se tornaram tão poderosas a ponto de intervir em agências de regulação, aquelas que dão notas a empresas, falsificando, através de chantagens políticas, seus balanços, corrompendo políticos e, conforme o segundo livro citado, tornando-se as duas, Fannie e Freddie, as mais poderosas empresas políticas nos Estados Unidos, mais poderosas até que o tal complexo militar-industrial.
Será exagero do autor? Pode ser, mas, pelo tamanho da crise financeira, talvez o exagero não seja tão grande.
A bolha estourou e a farra acabou
Claro que nenhum destes livros previu a crise financeira. Em resumo os livros mostram, em ótimo trabalho de jornalismo investigativo, sob diferentes ângulos, como estas duas empresas privadas, mas que contavam com subsídios e até dinheiro público, atuavam, inclusive inflando a bolha imobiliária desde os anos 90 e tornando-se os grandes responsáveis pelo crescimento econômico dos Estados Unidos e, por tabela, do mundo, assim como se tornaram tão poderosas, detendo enorme influência política, a ponto de um dos autores dizer que eram, simplesmente, as empresas com mais influência política dentro dos Estados Unidos. Influência essa, diga-se, muito fácil de ser compreendida.
A Fannie Mae e a Freddie Mac ofereciam casas a pessoas pobres. Imagine o potencial para compra de votos que estas duas empresas ofereciam. Elas poderiam construir casas em determinados redutos eleitorais de políticos, garantindo sua popularidade. Explica-se, como mostra o terceiro livro, por que o Congresso dos Estados Unidos nunca fiscalizou como deveria estas duas empresas. Claro que em um país como os Estados Unidos, em que um corrupto passa mais tempo na cadeia do que um psicopata no Brasil, práticas comuns por aqui como subornos diretos não existiam, mas, como mostra um dos livros, subsídios do governo eram repassados a essas empresas. Claro que, para que estas não parassem com a construção das casas e, claro, algum político, de qualquer dos partidos dominantes nos Estados Unidos tivesse seu nome ligado às benfeitorias feitas em seus respectivos distritos. E como entram os bancos do resto do mundo nesta história? Fácil de entender. Lembre-se da explicação dada anteriormente sobre como funcionava a Fannie Mae e a Freddie Mac. O governo dos Estados Unidos garantia os empréstimos dos bancos do mundo todo tornando o negócio altamente rentável. Até que, em 2007 e 2008, a bolha estourou e a farra acabou.
Lamentável que estes três livros sejam desconhecidos do grande público ou ainda da grande mídia, até a especializada, do Brasil. Eles dão uma ótima luz sobre as causas desta grande crise, como ela se arrastava fazia muito tempo, como se entranhou no mundo político e como foi responsável pela grande euforia do capitalismo mundial.
Os livros citados aqui podem ser achados na Amazon:
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Historiador, Uberlândia, MG