A imprensa cobriu quase tudo: a adoção de um bebê por um casal estável de homossexuais, unidos há mais de seis anos; o bom tratamento que o bebê recebe, passando da quase desnutrição, quando foi adotado, até hoje, quando atingiu o peso normal para a idade; a intervenção das autoridades, retirando o bebê do casal que o adotara, sob a alegação de que os dois rapazes, por seu homossexualismo (e um deles é travesti), ‘não são normais’. E para a criança, prossegue a argumentação, bom mesmo seria ser criada por um ‘casal normal’.
O que faltou cobrir:
1.
Há ‘casais normais’ à espera de bebês grandinhos para adotar? Ou o bebê terá de ficar nos berçários estatais, à míngua de carinho, mofando enquanto espera que alguém ‘normal’, casado com alguém ‘normal’, o venha buscar?2.
A afirmação de que o casal homossexual ‘não é normal’ não caracterizaria a homofobia (discriminação por orientação sexual)?3.
Como qualificar uma pessoa como ‘normal’ ou ‘anormal’? Júlio César, imperador de Roma, esplêndido comandante militar, excelente escritor, dizia-se ‘marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos’. Sócrates, o filósofo ateniense, costumava aproximar-se de garotos bonitos (e teve um caso com o general Alcibíades, que comandou as tropas de Atenas e de Esparta). Esparta, aliás, dona do mais feroz exército entre todas as cidades gregas, estimulava o homossexualismo entre seus soldados. Será ‘anormal’ a civilização greco-romana?4.
Olhe para o Aterro do Flamengo, no Rio. Quem o concebeu foi Lota de Macedo Soares, por muitos anos casada com a poeta americana Elizabeth Bishop. O protetor político de Lota foi um dos ídolos do conservadorismo brasileiro, o maior tribuno que este país já teve: o governador Carlos Lacerda.5.
Já que falamos em personalidades mundiais, há um líder político e militar que se notabilizou pelo comportamento ‘normal’. Não bebia, não fumava, não andava com homens, foi fiel à mulher de sua vida e com ela se casou antes de morrer. Este parâmetro da normalidade se chamava Adolf Hitler.Em casos de adoção, um critério deve estar acima de todos: o interesse da criança. De um lado, duas pessoas, homossexuais, amorosos, carinhosos, dedicados, que talvez não sejam os pais ideais para o bebê. De outro, nada.
Talvez seja este o grande ponto falho de toda a cobertura: faltou mostrar, entre preconceitos e definições apressadas, qual o interesse da criança.
A cabeça do eleitor
O velho Arthur Bernardes, presidente da República de 1922 a 1926, costumava dizer que ‘eleição e mineração, só depois da apuração’. A mineração se desenvolveu muito: hoje, é até possível ter uma idéia do que se vai encontrar quando terminar a escavação. Eleição é mais perigoso, como mostraram os jornais do mundo inteiro, que antes da apuração apontaram a vitória de Barack Obama em New Hampshire, e depois tiveram de se desmentir, com a vitória real de Hillary Clinton. Está certo, os jornais têm horário para fechar. Mas, se não for possível mudar o fechamento, se não houver jeito de driblar as exigências de impressão e distribuição, a velha fórmula, tão insatisfatória, pode ser melhor que a bola de cristal: ‘até o momento em que encerrávamos esta edição’. A informação não é completa, mas pelo menos também não é completamente errada.
The american melodrama
A cobertura das eleições americanas é muito difícil: há peculiaridades na escolha dos candidatos (o ‘filho favorito’ e o ‘caucus’ só existem nos Estados Unidos), há prévias em vinte estados no mesmo dia e não há como manter repórteres em todos eles (com a internet as coisas melhoraram, mas mesmo assim a garantia de precisão não é grande), há as regras diferentes para o voto em diferentes estados, muita coisa diferente e simultânea a ser integrada na grande narrativa.
Existem duas grandes coberturas, ambas de eleições antigas, que vale a pena consultar, para entender melhor o sistema eleitoral americano e para observar como figuras históricas se comportavam no dia-a-dia da disputa eleitoral. Um, o mais antigo, é de Theodore White, e trata da eleição de John Kennedy: ‘Como se faz um presidente’. O outro, de três repórteres ingleses do Sunday Times, Geoffrey Hodgson, Bruce Page e Lewis Chester: ‘Um melodrama americano’, sobre as eleições de 1968, que levaram Richard Nixon à Presidência da República.
Vale a pena procurar, vale a pena ler. Dos grandes personagens, talvez nenhum esteja vivo – a não ser (e quanto!) nas páginas destes livros.
Gossips
Há um terceiro livro que vale a pena. Dizem que é um romance de ficção sobre eleições americanas, em que há um candidato parecidíssimo com Bill Clinton, casado com uma senhora que em tudo lembra Hillary Clinton. O livro é assinado por ‘Anônimo’ (hoje já se sabe o autor: é o jornalista Joe Klein), traz fofocas saborosíssimas e seu título é Cores primárias. É gostoso de ler.
Pretending
O problema da cobertura das eleições americanas não é apenas a diferença do sistema eleitoral: é, muitas vezes, o falso cognato – aquela palavra igualzinha à que existe em português, mas que quer dizer outra coisa. ‘Pretend’, por exemplo, não significa ‘pretende’, mas ‘finge’. O espanhol ‘oficina’ quer dizer ‘escritório’. A nossa oficina, em espanhol, é ‘taller’.
Nas reportagens sobre Barack Obama, fala-se no ‘time’ do candidato. Não, ninguém se refere ao clube para o qual ele torce, e sim à equipe que o cerca. No caso, traduzir ‘team’ por ‘time’, embora não esteja errado, induz a erro.
Alegria política
Outro dia, um grande jornal, traduzindo ‘Worker’s Party in Brazil’, falou em ‘Festa dos Trabalhadores no Brasil’. Tudo bem, às vezes a política é uma festa. Pior foi a notícia sobre um operário que caiu de um andaime que ‘collapsed’ (desabou) nos EUA. Meninos, eu vi: disseram que o andaime ‘colapsou’.
Serra bem tratado
O governador paulista José Serra aumentou dramaticamente a verba de publicidade de seu Governo para este ano, de 60 para 88 milhões de reais. Os jornais publicaram. Mas este colunista não viu em lugar algum, talvez por falha na pesquisa, uma informação importantíssima: este é um ano eleitoral, o PSDB de Serra tem candidatos; e o próprio Serra é candidato à Presidência da República, em 2010.
Serra esquecido
Duas tragédias parecidas fazem aniversário: o desabamento do edifício Palace 2, aquele de Sérgio Naya, em que morreram oito pessoas, completa dez anos dentro de um mês; e a cratera do metrô de São Paulo, em que morreram sete pessoas, fez um ano na semana passada. No desabamento do Palace 2, dez anos depois, as vítimas ainda não foram indenizadas. Na cratera do Metrô, um ano depois, as famílias já receberam indenização (ainda faltam algumas pessoas, mas poucas). O governador Serra merece elogios pela presteza na indenização.
Entretanto, passado um ano, até agora não se sabe por que se abriu a cratera. E ninguém da imprensa, ainda, foi pedir ao governo, ou à Companhia do Metrô, o projeto executivo da estação que estava sendo construída no local.
Os números do Mendelski
Rogério Mendelski, trijornalista gaúcho (rádio, TV, jornal), profissional da melhor qualidade, também trava, como este colunista, uma batalha perdida contra os números que a imprensa publica e os modismos que tentam ‘corrigir’ termos conhecidos e corretos. Este é seu delicioso bilhete, comentando o último Circo da Notícia [ver ‘Sempre cabe mais um milhão‘]:
‘Já faz algum tempo que eu estou rouco de tanto berrar contra os cálculos do réveillon em Copacabana. Lembras que o público até o Réveillon do Século era de um milhão (e já era exagero)? De repente, empilharam 2,3 milhões. Mas a nova mídia tem novas expressões, tiradas ninguém sabe de onde: `risco de morte´ quando o risco sempre foi de se perder a vida, que, como se sabe, é mais valiosa que a morte. Outra bobagem: a polícia encontrou 35 munições em vez de encontrar 35 cartuchos de munição calibre 9mm. Sobre os macacos, conheço três: a Chita, o King Kong e o Macaco Simão’.
Rogério esqueceu outra delícia: ‘O presidente Bush quer mandar mais 25 mil tropas ao Iraque’. ‘Troop’, em inglês, pode ser ‘soldado’. Em português, é coletivo. Quanto aos macacos, seus três são, na verdade, dois e meio. Chita é a macaca dos filmes de Tarzã, mas nos livros Chita é o nome da pantera.
Os números das estradas
Nas notícias de TV sobre o retorno dos paulistanos do litoral, informava-se que, dos mais de 600 mil carros que desceram a Serra do Mar, 350 mil já tinham retornado. A polícia informava mais: que os veículos voltavam à média de oito mil por hora. Bom, fazendo-se as contas, chega-se à conclusão de que os ocupantes de pelo menos 192 mil veículos foram à praia só para constar: voltaram antes dos fogos, antes do champanhe, antes de jogar flores para Iemanjá.
O problema do número chutado é que dá para checar. E se não bate?
Erramos
Raul Drewnik, bom cronista, revisor dos melhores, e ainda por cima corintiano, mostra um erro deste colunista: a palavra ‘coalização’ está dicionarizada. Existe, enfim, como sinônimo de ‘coalizão’. Registre-se!
Erraram
Em compensação, grandes veículos capricharam nesta semana:
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‘Barcos iranianos foram ostis a navios americanos’**
‘Ascenção de China e Índia prejudica outros emergentes’Eta, grafia ruinzinha!
E eu com isso?
Reconheça a importância que a imprensa tem em sua vida: não fora a imprensa, como a gente ficaria sabendo que o senador Eduardo Suplicy foi a uma banca de jornais para comprar duas revistas? Ou que Jessica Alba diz que se entregou rápido para o primeiro namorado? Admita: como é que vivemos até hoje sem saber quanto tempo Jessica Alba levou para dar?
Mas tem mais coisa.
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‘Mariana Ximenes insiste em recusar convite para posar nua’**
‘Thalita corta dedo no Big Brother 8 e dá grito de dor’**
‘Irmã de Jessica Simpson teria ficado noiva de roqueiro’Teria ficado: se nem eles sabem, como é que nós, leitores, vamos saber?
O grande título
Semana rica, esta. Começa com um título inesquecível:
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‘Segundo a Polícia, os criminosos seriam bandidos’Passa por um daqueles estilo ‘obra aberta’, em que o leitor descobre sozinho o fim da frase – e, no caso, pode até escolher entre sustentar ou não a rima.
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‘Ministro diz que ampliação do Bolsa Família se mantém e não tem’É difícil escolher o melhor. Aquele de que o colunista mais gostou é o que vem a seguir:
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‘Moscas alcoólatras tentam se acasalar com insetos do mesmo sexo’Como reza o provérbio, mosca bêbada não tem dono.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados