O professor Nilson Lage esteve, semana passada [retrasada], em Fortaleza, para participar do Congresso Nacional de Policiais Federais – Conapef. Antes da palestra , falou com exclusividade ao ‘Caderno 3’ sobre os projetos de Conselho Federal de Jornalismo, de TV Pública e TV digital e as controversas leituras de grandes veículos da imprensa brasileira.
Bacharel em Letras, mestre em Comunicação e doutor em Lingüística, Nilson Lage, ex-professor na UFRJ e UFF e desde 1992 titular da Universidade Federal de Santa Catarina, é autor de livros referenciais para gerações de professores e estudantes de jornalismo no Brasil, como Teoria e Técnica da Reportagem, Pesquisa e Entrevista, Redação em Jornal Impresso Diário e Ideologia e Técnica da Notícia. Apesar da ênfase nas pesquisas e na prática em jornalismo impresso diário – atuou no Diário Carioca, Jornal do Brasil, Última Hora e O Globo –, é também autor de artigos sobre telejornalismo, semiótica e globalização.
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Curiosamente, o senhor veio a Fortaleza para um congresso de policiais federais…
Nilson Lage – É, vim dar meu depoimento (risos)…
Gostaria de começar perguntando justamente sobre isso: a Polícia Federal vem pautando a grande imprensa nos últimos anos talvez como nunca antes. Como o senhor avalia a cobertura a essas grandes operações, como nomes espirituosos, prisões em vários estados, muitos ingredientes passíveis de espetacularização?
N.L. – Aí você tem vários aspectos. Esse prestígio que hoje a Polícia Federal e o Ministério Público têm chama muita atenção. Eles ocupam prédios enormes em Brasília, concentram um poder muito grande. Agora, criou, por sua vez, uma situação curiosa, porque esse conjunto, Procuradoria e Polícia, começa a trabalhar como um poder sobre os outros poderes. Por outro lado, se não houvesse toda essa exposição, esses assuntos jamais seriam descobertos. Vivemos num país em que uma pessoa queima outra em um ponto de ônibus, e o cara é solto, porque é filho de gente poderosa, como aconteceu.
Nesta última ‘Operação Navalha’, da PF, alguns congressistas e autoridades do Judiciário reclamaram de vazamento de informações da polícia à imprensa. A polícia está jogando para a mídia?
N.L. – Mas o que acontece aí é que eles estão usando a imprensa para uma finalidade política. Não no sentido de carreira própria, mas de expor uma situação, uma coisa que num outro contexto seria revolucionária, no sentido de desmoralizar o Estado. Mas na verdade o Estado brasileiro está penetrado pela criminalidade, em todos os setores. Isso aconteceu historicamente, quando foi se deteriorando o serviço público, se generalizando a corrupção. Não há gerência, a gerência é toda política. Ninguém está preocupado com a finalidade do órgão, e sim com a própria carreira.
O poder tem medo da imprensa no Brasil?
N.L. – Tem. Deveria ter. Na verdade, o Estado está tão enfraquecido que tem medo de qualquer coisa. O Estado é essencialmente o Itamaraty, as Forças Armadas, uma parte do Ministério da Justiça – que pensam em longo prazo, não nas próximas eleições. Já o Executivo está sempre pretendendo ganhar eleição.
A eleição de 2006 foi marcada por um forte debate sobre o papel da imprensa. A mídia segue tendo esse poder no Brasil, de influenciar tanto uma eleição, ou esse caso mostra justamente o contrário?
N.L. – Por mais que o presidente mantenha a popularidade, e tenha até respaldo internacional, como é o caso de Lula, há uma questão séria: a da política paulista. São Paulo acha que é o Brasil, e que o Brasil é o quintal. Antigamente, tinha Minas, mas passou a segundo plano. Você tem em São Paulo uma elite muito conservadora, com uma visão específica. Você pega a imprensa de São Paulo, ela é monocórdica, diz a mesma coisa todo o tempo.
O senhor acredita que é viável no Brasil, com todos os interesses em jogo, termos uma rede de TV pública, diferente das TVs estatais?
N.L. – A proposta da TV pública funcionaria se você criasse duas coisas essenciais: primeiro, autonomia administrativa, provavelmente com um contrato de prestação de serviços, como eles têm com algumas empresas de Organização Social (OS), com metas a cumprir, mas com autonomia política muito forte. Depois, ter recursos próprios, como tem a BBC, como tem a TV Cultura de São Paulo. Só que a TV Cultura é um órgão político, continua sendo um órgão político – e acabou-se. Continua sendo daquele pessoal de São Paulo que jamais fará uma televisão realmente independente, sem amarras.
Nem com o (jornalista e escritor) Paulo Markun assumindo a direção da emissora?
N.L. – Não, porque ali é uma coisa complicada, uma fundação com uma representação da elite paulista, que pensa como a elite paulista, que quer fazer educação pela televisão. Televisão não é órgão para educação, não funciona assim. Você pode fazer vídeos educativos, usar a internet e tal, mas televisão de massa com programação totalmente educativa não funciona, não existe em lugar nenhum do mundo, é uma fantasia. E uma das coisas mais atrasadas do Brasil é a pedagogia, que se recusa a formar o cidadão para o trabalho, quer formar um cidadão abstrato, conceitual – não aquele preparado para o trabalho e para o mundo, mas aquele sujeito cordato, medíocre, pequeno, que aceita ser fundo de cenário a vida inteira. Então, poder, pode, mas não sei se com esses governos estaduais, que têm essas TVs educativas e que não são educativas coisa nenhuma, será possível reverter uma coisa tão viciada. Acho muito difícil, numa estrutura como essa, você impor um sistema de TV pública, realmente. Embora o Franklin Martins seja um profissional competente, eu não sei se ele teria condições de fazer isso, e muito menos o governo, que pensa politicamente.
Ao mesmo tempo que não é papel só da TV educar, como é que fica a responsabilidade educacional e cultural que a Constituição define para a TV?
N.L. – Primeiro, vamos pensar a educação num sentido amplo. A Rede Globo é uma tremenda educadora. Todas as novelas falam de capitalismo, de recursos de capital… Quer dizer, ela está didatizando o sistema. Nesse sentido, é uma TV educativa, como em vários outros sentidos: promove campanhas de vacinação, campanhas de interesse público, fornece uma informação que para a maioria das pessoas é a única informação… Em torno da televisão gira toda a dramaturgia do país, ela é entrelaçada com uma série de coisas culturais – o carnaval, a gravação de discos… Então, a TV tem uma função educativa. Não é a educação que nós queríamos, mas aí o problema é nosso, eles estão dentro de um negócio que funciona com dinheiro.
E a revista Veja, como o senhor avalia?
N.L. – A revista Veja… A Abril é uma grande empresa, sem dúvida, mas a revista é umbilicalmente vinculada à Time. Quando os Civita (proprietários do grupo Abril) vieram para o Brasil, trouxeram uma mala de dinheiro virtual: o contrato da Walt Disney para fazer revista em quadrinho. Construíram um império. Entraram no jornalismo com a Realidade, uma revista experimental, e depois entraram com a Veja. Aproveitaram o liberalismo contra o regime militar, para fazer praça junto à esquerda. Usavam muito aquela entrevista de páginas amarelas para dizer o que não podiam dizer, usando outras pessoas. Mas agora é uma revista que de modo geral sustenta os interesses de um capitalismo liberalíssimo e uma visão de mundo muito fechada da realidade. E com uma coisa que não gosto muito, que é a opinião disfarçada.
O senhor escreveu seus livros clássicos sobre texto de jornal, técnicas de reportagem. Uma área, para muitos, em profunda modificação, com a internet, o webjornalismo. De que modo o fazer jornalístico, principalmente o texto de jornal, se altera a partir disso?
N.L. – Eu acho uma bobagem esse negócio dos jornais que acham que só tem de ter textos curtos, que o leitor não tem tempo de ler. Se você pegar os grandes jornais do mundo, Le Monde, o New York Times, eles têm textos enormes, matérias de página inteira. Hoje você tem dois tipos de leitores: o sujeito que quer se informar puramente – e esse já chega atrasado, por conta da internet – e o sujeito que quer se aprofundar, entender as coisas, refletir. Nas grandes matérias do New York Times, eles pegam um problema, uma questão, e vão a fundo naquilo, com um nível de profundidade absolutamente surpreendente. Os jornais europeus não têm essa obsessão de síntese, nem os norte-americanos. Isso aí é uma coisa antiga do USA Today, que é um jornal de matérias pequenas, mas é um jornal que não cobre factualmente nada, faz sempre matérias paralelas.
E essas mudanças pelas quais o jornalismo passa, com a instantaneidade? Os profissionais estão preparados para tantas mudanças?
N.L. – Eu acho escola de comunicação no Brasil uma indignidade. A teoria de ensino quase sempre é uma teoria superada, da década de 30. O máximo a que eles chegam é Althusser, uma coisa de um mundo que já acabou, não é esse o mundo que a gente vive. Você hoje já tem teorias de informação muito mais avançadas que eles ignoram. Uma informação técnica científica leva 10 ou 20 anos para chegar aqui, em um mundo que você recebe direto. Mas tem um grupelho de pessoas que se instalou na Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e controla esse negócio.
O senhor é a favor ou contra a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista?
N.L. – Eu não sou contra a obrigatoriedade do diploma por uma razão muito simples: porque o jornalista tem que ter uma formação específica. Essa formação tem que ser de nível superior, não se pode admitir que não seja. Eu acho apenas que esse ensino deveria ser muito mais objetivamente voltado para a profissão, para formar uma pessoa que faz, em vez de uma pessoa que sabe.
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Repórter do Diário do Nordeste