Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Percalços do noticiário chapa-branca

Houve tempos, este colunista garante, em que cada veículo importante de comunicação tinha seus próprios repórteres na cobertura de cada grande evento. Havia a reportagem, havia as side-stories, havia o clima. As matérias eram assinadas por Ewaldo Dantas Ferreira, Ricardo Kotscho, Fernando Portella, Marcos Faerman, Evandro Carlos de Andrade, Ricardo Setti, Fernando Morais, tantos outros – e, na competição, as reportagens se tornavam cada vez melhores.

Tudo bem, os tempos hoje são de economia. Mas, se as agências noticiosas da Câmara e do Senado entrarem em greve, os meios de comunicação vão ter de lutar muito para não sair em branco. Matérias em todo o país saem iguaizinhas, até nos eventuais erros; e isso se torna a cada dia mais evidente, já que a internet coloca toda a imprensa ao alcance de todos. São os jornais pequenos que mais sofrerão com uma possível interrupção no noticiário oficial? Não, são os grandes. Os pequenos, que dependem não apenas das agências oficiais como do noticiário distribuído pelos grandes, estes não sobreviverão sequer para sofrer.

Neste momento de crise, as fontes oficiais de informação ganham poder desmedido. O noticiário é chapa-branca; as fontes são sempre as do poder. Quem não é poder – incluindo os advogados de defesa – não tem acesso à imprensa.

Nada contra o uso de agências para o noticiário básico. Mas cada jornal, cada TV, cada rádio precisa ter personalidade própria, uma maneira peculiar de contar as histórias. Cada veículo de comunicação precisa abrir caminhos à informação da sociedade, não apenas dos nobres parlamentares ou dos promotores públicos. Isso não tem ocorrido. E este colunista não entende por que, então, houve tamanha campanha contra a Voz do Brasil.



Pode tudo

Este colunista não viu, por exemplo, nenhum comentário sobre a monumental frase do presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo (que, a propósito, já trocou o diretor da Agência Câmara, colocando alguém mais próximo de si). Aldo pertence ao Partido Comunista do Brasil; sua ideologia, portanto, é atéia, materialista. No entanto, declara-se ‘um homem temente a Deus’.

Se o deputado Rebelo quiser dar um curso sobre a conciliação entre o marxismo, o materialismo dialético e o temor a Deus, virá gente do mundo inteiro para ouvi-lo. No entanto, dominados pelo noticiário oficial, nossos companheiros deixaram passar. Talvez contagiados pelo temor marxista-leninista a Deus, perdoaram.



Mil perdões

Ninguém quis saber, também, por que o presidente Lula, em sua entrevista a emissoras de rádio, esqueceu potências noticiosas como Bandeirantes, CBN, Eldorado e Jovem Pan. Talvez os repórteres não dessem tanta risada a cada frase do presidente, mas com certeza atingiria o público interessado em notícias.



Suposto

O problema é sério: como se faz uma matéria declaratória, sem qualquer trabalho investigativo, e sem parecer que se apóia a tomada de posição da fonte com relação aos fatos? Simples: descobriu-se a palavra ‘suposto’. ‘Suposto’, em princípio, é uma boa palavra: serve para evitar que pessoas suspeitas sejam apontadas nas reportagens como definitivamente culpadas. Mas o ‘suposto’ entra agora como óleo lubrificante: faz com que a matéria gere menos atritos. Algo como ‘o acusador diz que o suposto assassino matou dezessete pessoas, arrancou-lhes o fígado e fez um sarapatel’. Talvez não tenha havido tantas mortes, é provável que nenhum corpo tenha ficado sem fígado, sarapatel com certeza não houve; mas está tudo liberado, porque o assassino é ‘suposto’.

É como no caso da Escola Base: todas as vítimas da mentiralhada da polícia e da artilharia da imprensa eram supostos estupradores de criancinhas. E quem vai se importar, fora as vítimas da falsidade, se o crime ocorreu ou não? Reportagem dá trabalho!



Ouvidos remotos

A crise entre os ministros Palocci e Dilma Roussef provocou uma grande variedade de matérias exclusivas, de bastidores. Nelas, uma quantidade enorme de transcrições de diálogos em salas fechadas, com duas pessoas presentes, nenhuma das quais tinha o menor interesse em divulgar o que havia acontecido.

Aguarde a próxima etapa: os pensamentos dos envolvidos na crise.



Couro grosso

Faz muitos anos, e como a história não tinha grande importância acabou sendo engraçada. Mas acontece que um elefante fugiu do circo, no Morumbi. E, até que fosse recuperado, fez tudo aquilo que se espera: entrou por uma porta estreita demais para ele, derrubou uma parede, assustou um cavalheiro que tomava café e de repente viu passar um elefante pela copa, pisou em um ou dois carros, fez um carnaval.

O Jornal da Tarde mandou um foca promissor para a cobertura. Na matéria, não havia uma só informação: só os pensamentos do elefante, que não entendia por que aquelas crianças, que no circo o aplaudiam, agora fugiam dele. Por que tanto tumulto, por que tanta confusão por onde passava? Será que o pessoal ali tinha algum preconceito contra animais de grande porte?

Renato Pompeu, o grande copy, chamado para tentar salvar o texto, fez uma longa e infrutífera entrevista com o repórter. Por exemplo, o cavalheiro que tomava café e viu um elefante passar pela copa: como é que se chamava? Seu endereço? E o foca explicou: não tinha pegado essas informações porque isso não tinha importância.

A grande matéria do dia foi ultra-minimizada. E o Renato Pompeu a apelidou de ‘O Caso do Paquiderme Meditabundo’.



Couro fino

Veja só: a história acima não é igualzinha a algumas matérias sobre a crise, que têm análise, têm descrições de algo que o repórter não viu, têm conversas que ninguém presenciou e não têm qualquer informação que possa ser checada?



Cabeça no lugar

Mas existe bom jornalismo no país – embora nem sempre nos jornais. Transcrevemos abaixo uma notável análise de Marcos Sá Correa, um dos grandes jornalistas brasileiros, sobre as brigas no governo Lula. Marcos Sá Correa lembra de Marcus Tullius Detritus, personagem de ‘A Cizânia’, uma excelente aventura de Asterix. A matéria saiu originalmente no NoMínimo.

O pai de todas as intrigas

Marcos Sá Corrêa

Pausa nas intrigas internas do governo, para falar de um baixinho de origem humilde, que um dia saiu da cadeia para jogar um grande papel na história. Mas não é quem você está pensando. Nem a história é bem a nossa. Mas a de Tulius Detritus, o enviado especial de Júlio César para espalhar a discórdia na aldeia dos gauleses irresistíveis. Ou seja, um personagem de Asterix, nos bons tempos em que ele estava entregue à administração da dupla Goscinny e Uderzo.

E o que ele tem a ver com o Brasil de Lula? Bem, para começo de conversa, o presidente desde quarta-feira passada anda numa fase cabeça. Visitando a 3ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação no dia em que a fogueira esperava no Senado o ministro Antônio Palocci, Lula mostrou por que é uma versão muito singular do brasileiro comum. Ele, ao contrário das pessoas que nascem com um destino, tem o poder de reinventar a si mesmo. E, naquele dia, ele estava irreconhecível.

Lula conseguiu dizer num só discurso que os cientistas devem ler mais – quatro jornais em vez de dois por dia, pelo menos – e os professores precisam voltar aos estudos, para exercer seus ofícios. No embalo, ainda aproveitou para cutucar os brios dos brasileiros que se aposentam antes do tempo. Se desse para levá-lo ao pé da letra, ali estava a receita oficial para o Brasil nunca mais ter outro Lula, embora o original esteja neste momento em campanha para repetir a dose de um presidente que se aposentou muito cedo, trocando com a ditadura 31 dias de cana leve pela pensão vitalícia, e sempre teve na mais alta conta a baixa escolaridade que lhe deu o diploma de autêntico líder popular.

Sem falar que, outro dia, do alto de um palanque na Bahia, Lula repetiu mais uma vez a conversa de que governa melhor com menos livro. Ele muda muito. Muda tanto que, quando os ministros se estranham em seu governo, nunca se sabe muito bem o que ele está fazendo no meio deles. Soprando na orelha da ministra Dilma Roussef as coisas que o ministro Antônio Palocci não pode ouvir? Mandando Palocci encarar a chefe da Casa Civil? As duas coisas ao mesmo tempo?

Não deve ser fácil trabalhar numa equipe onde o presidente todo dia pode ser uma surpresa. O que nos leva de volta a Tulius Detritus, que pelo menos só existiu na ficção e, no gênero, era mais divertido. Ele foi mandado à Gália em missão secreta, para dividir os gauleses. Tirado a ferros da masmorra, já se apresentou a César diante de dois guardas aos berros. ‘Andou dizendo que eu sou o garoto do centurião, né?’ – gritava um. ‘E quem mandou contar a ele que eu cheguei bêbado ontem à noite?’ – rugia o outro.

Um prodígio. A bordo da galera que o levava ao acampamento romano de Aquarium, conseguiu rachar até os galés. ‘Foi você que contou aos outros que eu não uso desodorante?’, queixou-se um dos remadores, no fundo do casco. No convés, a tripulação se desentendeu com o comandante. No meio do caminho, o barco foi abordado por um navio pirata, aquele que sempre leva as sobras nas viagens de Asterix.

Dessa vez, não houve luta. Detritus pôs os piratas e os romanos a pique, cada um com seu próprio motim. Em Aquarium, o centurião se desentendeu com os soldados. Na aldeia, houve pancadaria até entre as mulheres na fila do peixe. E os gauleses se convenceram de que Asterix tinha vendido aos romanos a receita da poção mágica do Druida Panoramix. Claro que, tratando-se de um herói invencível, no fim Detritus é condenado por alta traição.

‘Mas não devemos nos preocupar com o semeador da discórdia’, diz o texto, porque ele ‘sempre se sai bem.’ Para ilustrar a previsão de Goscinny, o desenho de Uderzo mostra uma galera ao longe, cujo capitão manda virar a bombordo e o imediato não cumpre a ordem, alegando que ele subiu ao posto graças ao apadrinhamento político. O quê? Já viu isso em algum lugar? Deve ter sido na história em quadrinhos.



Mundo louco – 1

Este colunista encaminhou um e-mail que foi devolvido pelo provedor por ter ‘conteúdo obsceno’ (ou, como diz o provedor, ‘obseno’). Qual teria sido o conteúdo ‘obseno’? Simples: no assunto, constava o nome de um cavalheiro cujo sobrenome é Pinto. Pinto, como o sobrenome de Ziraldo, do Nêumanne, do falecido senador Magalhães. Ou, mais indecente ainda, como a Sappa – Sociedade Amigos da Praia do Pinto e Ponta Azeda. Fica na Ilhabela.



Mundo louco – 2

A notícia foi divulgada num grande portal, na quinta-feira (24/11). A casa de um ministro do Supremo tinha sido invadida na véspera, portanto na quarta-feira – ‘ontem, por volta das 22h’. Prosseguia o texto: ‘Os assaltantes levaram o carro de uso pessoal do ministro, um Vectra, que foi encontrado na quarta-feira pela manhã em um bairro próximo’.

Não é por nada, mas como é que um carro roubado na quarta-feira às dez da noite pode ser encontrado na quarta-feira pela manhã?