É lugar-comum, principalmente entre os adeptos do julgamento sumário, fixar o conceito de que a mídia é o corpo degenerado a disseminar a irreversível contaminação no imaginário social. Os teóricos frankfurtianos tinham especial simpatia por tese semelhante, respaldada por um contexto histórico que, em certo nível, a justificava. Como nem sempre, porém, o tempo atua a favor de algumas avaliações, por vezes o que é percebido em dada época não se ratifica em períodos e ambiências posteriores. Para ilustração dessa inicial proposição, bem serve a experiência brasileira.
Às dezenas, jorram artigos de todas as direções e colorações a respeito de procedimentos tendenciosos por parte da mídia. A acusação tanto se dirige para reportagens sobre acidentes quanto para cobertura de campanhas políticas. O fato é que fica a percepção de haver na mídia um permanente estado de maquinação para, de 24 em 24 horas, um pequeno conjunto de cérebros, sem outra função senão a de tramar contra ou a favor de ‘a’ ou ‘b’. É verificável que, vez por outra, manipulações ocorrem. Estas, porém, descartadas algumas sutilezas, não escapam ao olhar médio da população letrada.
Há algum tempo, para publicação acadêmica, formulei, num ensaio sobre a ‘cultura da violência’, o conceito de ‘alienação consciente’. Não caberia aqui, na estreiteza de um artigo, alongar reflexões sobre o aparente paradoxo sugerido pela expressão. Todavia, para não deixar o leitor absolutamente órfão de mínima pista, resumiria na seguinte sentença: o público letrado sabe muito bem a barganha que faz ao escolher um subproduto cultural (impresso ou audiovisual), em prejuízo de uma experiência intelectiva mais densa e enriquecedora. Assim, sinteticamente, se chega, após as configurações alinhavadas por Hegel e Marx, ao perfil do que encarna a ‘alienação consciente’. Aquele que pôde ter acesso ao conhecimento está apto a libertar-se da ‘consciência ingênua’. Se assim não procede, é por acomodação que se entrega ao estado de torpor.
Pressão hegemônica
O que, efetivamente, com tal introdução, se pretende abordar? A população eleitora se vê em plena reta final de decisão para cargos majoritários. Sinceramente, ante o quadro posto, e muito bem delineado pela cobertura jornalística, fico imaginando que critérios o eleitor estará utilizando para definir seu voto.
Somente em estado de crença, parceira inseparável da cegueira crítica, ou de descrença, gêmea da indiferença, o eleitor joga tudo para o alto e fecha com a opção ‘x’. Se, porventura, o eleitor ousar trilhar o caminho da coerência, levando em conta o arco de alianças, cruzando questão nacional com armações locais, creio que, diante da urna, sofrerá algum tipo de síndrome paralisante, tamanho o caráter esquizofrênico das coligações, das trajetórias históricas, das afinidades ideológicas, dos compromissos éticos e daí por diante.
Percebe-se, no Brasil, crescente (e não menos preocupante) dessintonia entre o modo como se exibe a cultura e aquele com o qual se expõe a política. Nas últimas décadas, é visível que cultura e política seguiram por rotas absolutamente desencontradas. Nesse aspecto é que, talvez, a mídia mereça reparos críticos.
Um país com dimensões continentais como o Brasil, tendo abrigado, ao longo da história, migrações das mais variadas procedências, findou por, em cada região, desenvolver amplo leque de diversidades culturais. Essa foi, inclusive, a percepção de Oswald de Andrade ao conceber o ‘Manifesto Antropófago’, em 1928. O imaginário cultural brasileiro sempre que se permitiu a incorporação de manifestações estrangeiras e as uniu às expressões nacionais; gerou, em todos os campos da cultura, belíssimas metamorfoses das quais jamais se fizeram ausentes a originalidade e a inventividade. Isto é patente em todas as formas de codificação: artes plásticas, música, literatura, teatro, cinema. Indiscutivelmente, proliferou, no sentimento nacional, vocação para a ‘antropofagia cultural’.
Em tempos atuais, intensa intervenção da lógica de mercado, em cumplicidade com rebaixamento da qualidade educacional, vem ditando, por sedução e indução publicitárias, acentuada descaracterização das identidades variadas que compõem o rico mosaico da diversidade cultural. Nesse quadro, a mídia (impressa e, principalmente, a modalidade eletrônica) consagra visibilidade para a ‘mesmice’.
No âmbito nacional, afora jornais locais que tentam resistir à pressão hegemônica (e, excluídos, sobretudo, aqueles financiados por ‘caciques políticos’), há a produção televisiva padronizada pelas redes, asfixiando (ou abortando) a especificidade da produção local. Há, pois, um país que, sentindo-se culturalmente diferente, se vê como igual. Ao fim das contas, as populações regionais nem se sentem integradas ao restante do país, nem se vêem, nos produtos culturais, contempladas.
Tudo se dissolve
De sua parte, a política que, a despeito das diferenças regionais, deveria ser guiada por coerência ideológica e afinidades programáticas, a partir do fato de nela estarem partidos nacionais, oferece um cenário de melancólico pastiche. Ainda mais assustador é ouvir de certos ‘cientistas políticos’ que a diversidade regional dos partidos é um benefício à ‘cultura política’ nacional. É nesse segundo quadro que a mídia também se equivoca. Ao omitir tom mais incisivamente crítico, em nome da pura informação, a mídia colabora para a consolidação de práticas com as quais mais se degrada o próprio exercício da política. O eleitor, por sua vez, finda por habituar-se ao padrão estabelecido.
A mídia, até com alguma insistência, tem cobrado dos políticos posições a respeito do que pensam sobre a decantada, prometida e sempre adiada ‘reforma política’. Suspeita-se que, mesmo em relação a tal tema, haja farta dose de ingenuidade. Que reforma, afinal, haveremos de ter ante um eleitorado inerte, capaz de reconduzir à esfera pública figuras como Fernando Collor e Paulo Maluf, além de outros ‘mensaleiros’ e, para renovação, indica Clodovil Hernandes? Por certo, não foi a mídia a responsável. A questão talvez melhor se elucide na direção da ‘alienação consciente’.
De um modo geral, com tudo que a respeito da mídia se declare, o que efetivamente está posto é o fato de a maior parte do eleitorado levar em conta seus interesses mais imediatos, independentemente de quem tenha feito ‘isso’ ou ‘aquilo’. A partir do momento que as principais forças políticas do país deram demonstração do quanto se equiparam em práticas delituosas, o eleitorado ‘jogou a toalha’, ignorando a ética e escolhendo aquele que melhor rendimento lhe assegura. Projeto de nação, nesse contexto, foi reduzido a uma tosca retórica de passado enterrado. Que preço haverá de ser pago por esse comportamento é algo cuja dimensão ainda não poderemos medir. Apenas o tempo da história revelará.
Por vezes tenho a sensação de que a política brasileira foi arquitetada pela genialidade ficcional de um grupo que, em certo dia, se reuniu para a potencialização máxima da estética do absurdo: Ibsen, Kafka, Joyce, Pirandello, Brecht, Ionesco e Beckett. Para completar a lista, não faria mal se a ela se adicionassem Machado de Assis (O Alienista) e Lima Barreto (O homem que sabia javanês). Temo que a lista poderia ser mais extensa. Afinal, como não citar Balzac (Ilusões perdidas‘) e Dostoievski (O idiota)? No recorte das tramas absurdas, até que a mídia se sai razoavelmente.
A mídia, com a incumbência de noticiar um país marcado pela lógica invertida, não pode escapar de uma tensão interna de origem paradoxal. O próprio Balzac, na obra mencionada, a um só tempo afirma que os jornais são ‘o câncer que talvez devore o país’ e, na mesma obra, adiante os reconhece como ‘lupanares do pensamento’. Em se tratando de realidade brasileira, provavelmente Balzac acertou nas duas avaliações.
Enquanto isso, segmentos da sociedade ainda discutem a respeito da publicação ou não das ‘fantasmagóricas’ fotos do dinheiro. A rigor, a mídia não é quem deve ocupar a cadeira dos réus. Ao não publicar, a mídia pode ser acusada como parte interessada. Ao publicar, acusada é de favorecimento. A saída não deve ser abatida na conta da mídia e sim nos patrocinadores de atos deploráveis. A mídia, por acaso, inventou o delito? É claro que não foi ingênua a sincronicidade da publicação às vésperas da votação. Por outro lado, nada do que foi divulgado era mentiroso. Não será lícito que os eleitores tenham o direito de comparecimento às urnas em pleno estado de esclarecimento? Se a foto traduz a materialidade do ato ilícito, é mais que justa sua exibição.
O eleitor brasileiro já deu indiscutíveis provas de que, passados os primeiros dias do impacto de uma denúncia, tudo se dissolve. Creio que, mesmo reunindo o elenco de escritores e dramaturgos, a exemplo dos citados, nenhum deles teria talento suficiente para imaginar um desfecho à altura do perfil esfíngico do Brasil. Farta-se aquele que crê.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)