Que o mensalão começou em Minas Gerais, até os fios de cabelo de Marcos Valério sabiam. A primeira investida do esquema beneficiou o governador tucano Eduardo Azeredo, candidato à reeleição (perdeu para Itamar Franco). A imprensa até que deu a notícia, embora discretamente. E esqueceu o assunto.
Agora, alguns anos depois, o tema volta à primeira página, mas só porque a Polícia Federal concluiu seu relatório. Nesse tempo todo, nenhum meio de comunicação investigou o caso por conta própria. Nem mesmo quando Walfrido dos Mares Guia, apontado como partícipe do primeiro mensalão, foi nomeado ministro do governo petista, apontado como partícipe do segundo mensalão. Silêncio. Agora o assunto foi retomado – mas desde quando a imprensa precisa ser pautada pela Polícia Federal?
É feio. E, no entanto, faz parte de um rol de assuntos nunca muito bem explicados, casos que não ficaram em segredo, mas mereceram pouquíssimo destaque e nenhum investimento em reportagem. O caso dos duzentinhos, por exemplo, na época em que, por iniciativa tucana, conseguiu-se aprovar a reeleição do presidente da República. E era um caso interessante, até pelo nome de um dos parlamentares citados – Ronivon. A filha extraconjugal de um senador mereceu amplo espaço, muito maior que o do filho extraconjugal de outro senador (e, nos dois casos, a acusação era a mesma: mães e crianças seriam mantidas por grandes empresas). O caso do metrô paulista, onde um acidente comeu sete vidas, há muitos e muitos meses, também não ganhou investigação. Ninguém pediu sequer para ver o projeto executivo da estação que virou buraco. E não é coisa apenas tucana: os túneis petistas em São Paulo ficaram inundados logo após a inauguração e foi preciso reformá-los. Cadê as matérias?
Pois é: há assuntos que entram na moda, há assuntos que não há força humana capaz de colocá-los na mídia. Tudo bem, vai ver que o mundo é assim. Mas precisava transformar o mensalão tucano, na imprensa, em mensalão mineiro?
Mata, esfola
A onda do lincha e relincha, dos protestos contra advogados que sabem trabalhar, da guerra aos juízes que se recusam a decidir conforme as ordens da imprensa, atinge patamares nunca dantes vistos. Primeiro uma grande revista apontou, como maneira de combater a criminalidade, a redução drástica da concessão de habeas corpus. Um instrumento jurídico que funciona há mil anos, sempre o primeiro a ser abolido pelas ditaduras, garantia dos direitos e liberdades individuais, de repente vira vilão – sendo esquecido convenientemente que, nos países em que os direitos e liberdades individuais são garantidos com mais firmeza, os índices de criminalidade são os menores do mundo. Depois, jornalistas excelentes, que nos tempos da ditadura lutavam contra o autoritarismo, passam a exigir que o réu seja executado primeiro e julgado depois.
Não é uma novidade: em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, a Rainha de Copas já gritava ‘cortem-lhe a cabeça’ a cada vez em que se via contrariada. Mas aqui estamos aperfeiçoando o lema da Rainha de Copas: outro dia, num grande jornal, um grande colunista acusava o presidente Lula de, ao dizer que considerava José Dirceu inocente, menosprezar o Ministério Público, que fez denúncia contra ele, e o Supremo Tribunal Federal, por aceitá-la.
Tudo bem, se as pessoas não aprenderam alguns princípios básicos do Direito em tantos anos de carreira jornalística, não é agora que irão decorá-los. Mas não custa relembrar, pelo menos, o antigo sucesso de Herivelto Martins e Marino Pinto, com Isaurinha Garcia: ‘primeiro é preciso julgar pra depois condenar’.
Tempos e costumes
Os heróis da imprensa hoje são delegados e promotores. Os vilões da imprensa, hoje, são os advogados (‘advogados caríssimos, onde é que o réu arranja dinheiro para pagá-los?’).
Vale a pena ler o livro de Saulo Ramos, Código da Vida. Há alguns anos, na época da ditadura militar, sempre que um jornalista foi perseguido havia um delegado para investigá-lo e um promotor para acusá-lo (e, conforme o caso, até para garantir que a vítima se suicidou). E sempre um advogado para defendê-lo.
Tudo crime comum
O repórter Amaury Ribeiro Jr., que investigava o narcotráfico na região de Brasília e sofreu um atentado, de acordo com a verdade oficial não sofreu um atentado. Segundo a polícia de Goiás, foi um assalto comum, praticado por um bandido que nem sabia quem era a vítima. Vejamos: o repórter, cujas reportagens ameaçavam o poder dos narcotraficantes da região, estava num bar quando um jovem se aproximou, atirou e fugiu, sem nada roubar. Um assalto comum, claro. Tanto era um assalto comum que a delegada que começou a investigar a hipótese de atentado foi afastada logo no início do inquérito.
Em São José dos Campos, onde radialista João Alckmin move dura campanha contra os caça-níqueis, uma pessoa se aproximou de seu carro e deu um tiro de Magnum. Mas não era ele que estava no carro: era o advogado Rodrigo Duenhas, que escapou por pouco da morte ou da tetraplegia. Segundo a polícia, foi crime comum, também – como se assaltante comum andasse armado com Magnum e atirasse sem sequer pedir o dinheiro e o relógio da vítima.
O coelho e o porco
Dizem que, um dia, o FBI, a Scotland Yard e a polícia brasileira entraram num concurso: tratava-se de localizar, o mais rapidamente possível, um coelho solto na mata. O FBI saiu atrás do coelho e voltou com ele em cinco minutos. A Scotland Yard saiu atrás do coelho e voltou com ele em três minutos. A polícia brasileira voltou um minuto depois, com um porco ensanguentado gritando: ‘Eu sou coelho! Eu sou coelho!’.
Tudo crime comum, cientificamente investigado.
E daí?
O sempre brilhante Alex Periscinoto, publicitário de primeiríssima linha, costuma citar uma frase americana sobre a existência ou não de conteúdo real num anúncio, ou numa reportagem: ‘Where is the beef?’
Traduzindo, ‘cadê a carne debaixo do angu?’ Ou, mais concisamente, ‘e daí?’.
Bom, outro dia saiu uma matéria enorme mostrando que empresas contratadas pela Igreja Universal do Reino de Deus para construir seus templos estão entre as grandes doadoras de campanha do partido que se supõe apoiado por ela.
Pergunta-se: é ilegal? Não, não é ilegal. Houve uso de dinheiro público? Não, o dinheiro é particular. Os limites legais foram obedecidos? Sim, foram obedecidos. Então, caros colegas, ninguém tem nada com isso.
No mundo real, empresas que obtêm bons contratos procuram retribuir aos contratantes não apenas com bons serviços, mas também com outras demonstrações de parceria. Se está tudo dentro da lei, qual é o problema? Onde está o interesse público?
E, no entanto, as reportagens saem com inegável tom de denúncia.
Não haveria aí um certo preconceito, um viés contrário àquela igreja? Lembremos: quando Edir Macedo não era ainda um poderoso empresário de comunicações, até o título de bispo, que usa, era grafado entre aspas por inúmeros veículos.
E eu com isso?
Antigamente, uma boa máquina de escrever (manual, não elétrica) era caríssima: comprava-se em muitas prestações, a perder de vista, e mesmo assim não era para todo mundo. Tinha suas limitações: corrigir os erros era difícil, a fita tinha de estar boa, cópias só com papel carbono e em número limitado. Os felizardos com acesso ao mimeógrafo tinham outro problema: eram obrigados a datilografar num papel especial, em que era impossível ler o que tinha sido escrito. E, pronto o serviço, era preciso apelar ao molecular: chamava-se o moleque mais próximo para ir entregar a matéria no jornal.
Hoje, não: ficou tudo mais fácil. É por isso que podemos ler tranquilamente, quase no momento em que as coisas aconteceram, informações relevantes, sem as quais dificilmente conseguiríamos viver hoje em dia. Por exemplo:
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‘Ivete Sangalo conta quem era o moreno misterioso que estava com ela em Nova York’Ou informações que despertam nossa curiosidade, sem satisfazê-la:
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‘Saiba o nome da biografia de Edir Macedo, a ser lançada no dia 29’Ou até coisas que preferiríamos não saber – aliás, o ideal seria que nem tivessem acontecido:
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‘Com bolo e salgadinho, Fernandinho Beira-Mar casa-se’Quem será que quis casar com ele?
O grande título
Um excelente título, nesta semana, é uma frase que certamente o presidente Lula não disse – pelo menos não disse dessa forma:
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‘Lula sobre FHC: ‘fiz Brasil que ele não conseguiu’’Mas o melhor título da semana, criativo e irreverente, trata do caso da senhora que funcionou como barriga de aluguel da própria filha.
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‘Avó é a mãe do ano’Lembra os bons títulos do Jornal da Tarde.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados