A Rede Eldorado, pertencente ao grupo de O Estado de S.Paulo, censurou administrativamente o programa de rádio Showtime, de João Alckmin, que toca principalmente nos problemas do Judiciário, da Segurança Pública e das máquinas caça-níqueis, e o retirou de sua programação. O Estado de S.Paulo, por sua vez, sofreu censura judicial pedida pelo grupo político do senador José Sarney. A Tarde, de Salvador, sofreu censura judicial; o Ministério da Justiça e o Ministério Público adotam uma norma de classificação de programas de TV por faixa de idade e ameaçam processar as emissoras que, a seu ver, a desobedecem.
E a Constituição, que veda a censura prévia? Será a Constituição, como já a definiu um juiz, apenas um papel – papel que se respeita apenas quando convém?
Seguir a Constituição significa liberar os meios de comunicação para que publiquem o que quiserem, sujeitos, porém, a processos judiciais. Em princípio, tudo OK. Na prática, a coisa é um pouco diferente. Os processos são lentos, de tal maneira que a reparação de eventuais danos fica para muito mais tarde, sem efeito aparente; e os meios de comunicação, confiantes nessa lentidão, com frequência se negam a permitir aos atingidos por suas reportagens qualquer tipo de reação, variando de não ouvi-los nas matérias até não publicar as contestações que enviem ao veículo – mesmo que sejam na forma de simples cartas, em linguagem respeitosa e concisa, à Redação.
A ética jornalística recomenda que todos os lados sejam ouvidos (e ouvidos a sério, não apenas para cumprir tabela); e que o direito de resposta, segundo normas civilizadas de tamanho, oportunidade e linguagem, seja amplamente concedido. Não é o que vem acontecendo. O cavalheiro é acusado de intermediar a nomeação de esposa, sogra, filhos, netos, e isso sai numa página inteira; sua resposta, provando que não é casado, não vive com ninguém, não tem filhos, nem netos, nem sogra, nem esposa, nem amante, é transformada num ‘fulano nega as acusações’. Recurso à Justiça? Daqui a cinco, seis, dez anos, quando ninguém mais se lembra do caso, aparece no veículo uma sentença judicial, em linguagem frequentemente hermética, informando, data venia, que nada daquilo aconteceu.
Há soluções. Uma série de boas idéias foi proposta pelo ombudsman da Folha de S.Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva. Deve haver outras. Que tal estudá-las?
A opinião do ombudsman
Carlos Eduardo, em sabatina no auditório da Folha, disse algo que todos nós conhecemos, mas relutamos em admitir: jornalistas, com frequência, são arrogantes, prepotentes, adoram criticar, odeiam receber críticas (ver ‘`Jornalistas são arrogantes e não querem ser melhorados´‘ e ‘Ombudsman defende autorregulação da imprensa‘). Há muitos e muitos anos, nos tempos em que Sarney tinha cabelos brancos, este colunista criou na Folha da Tarde, de São Paulo, uma coluna do leitor em que todas as cartas publicadas eram respondidas. Deu trabalho encontrar quem a fizesse: quando o leitor se queixava de que o jornal tinha escrito ‘caxorro’, a tendência do redator, em vez de concordar que havia um erro, era dizer que o leitor tinha também cometido erros de português na carta.
Só que o problema era outro: o jornalista é pago para escrever corretamente, e o leitor, que em última análise paga seu salário, tem todo o direito de reclamar quando acha que há erro. A função do jornal certamente não é brigar com ele.
Uma das propostas de Carlos Eduardo é a multiplicação do número de ouvidores. Um ombudsman em cada meio de comunicação pode ser caro, mas a nova e crescente consciência crítica compensa. Outra idéia é criar uma espécie de Conar, o conselho de autorregulamentação da publicidade, que vem funcionando bem há muitos e muitos anos.
O jornalista Ricardo Kotscho, favorável à autorregulamentação, defende o Conselho Federal de Jornalismo que o governo quis implantar. Mas são coisas diferentes: o Conar é apartidário. No jornalismo, seria preciso tomar cuidado para que a autorregulamentação se mantivesse longe dos partidos. Não é simples: as matérias não poderiam ser submetidas a exame crítico por profissionais ligados a partidos, ou centrais sindicais partidarizadas. Seria preciso garantir que, como no caso dos publicitários do Conar, os encarregados das análises sejam profissionais respeitados, de notório saber jornalístico e ilibada reputação. Como escolhê-los? Este é um bom tema de debates.
E é importante debater logo, como salientou Carlos Eduardo: ‘Ou os jornais se autorregulam para melhorar ou eles vão ser regulados por alguém, e vai ser muito pior para todos’. A autorregulação, acredita ele – e este colunista concorda integralmente – é essencial para a preservação da liberdade de imprensa.
O temor reverencial
Há não muito tempo, um promotor se irritou com a repórter de um jornal do interior paulista que ousou ouvir as pessoas acusadas por ele – a tradicional, e tão pouco respeitada, oitiva do outro lado. E tanto fez que conseguiu a demissão da repórter. Outro promotor, em excesso de velocidade, guiando na contramão, provavelmente embriagado (havia sinais de amplo consumo de álcool, mas ele se negou a fazer qualquer tipo de teste), matou uma família inteira. Foi transferido para a capital – um posto disputadíssimo. Foi como se tivesse recebido uma promoção. E a imprensa manteve silêncio.
Agora acontece mais um caso parecido. Em Cosmópolis, no interior paulista, uma senhora foi assassinada pelo ex-marido. Mas não se trata de um ex-marido qualquer: trata-se de um policial. E o caso foi noticiado como se o matador fosse também uma vítima. O jornal local assume, nas primeiras linhas, que o policial ‘cometeu um ato de loucura’; em seguida, diz que ele sofria de depressão havia cinco meses, ‘desde que [a esposa] abandonou o relacionamento’.
Quem disse que era loucura? O repórter. Houve algum exame psiquiátrico antes que o jornal publicasse a versão que atenuaria o assassínio? Não, claro que não. Quem diagnosticou a depressão? Quem disse que a depressão foi causada pelo fim do relacionamento? Pelo jeito, o repórter. E ficou tudo pronto para que o ‘ato de loucura’ se transformasse na arma da defesa. É melhor o ‘ato de loucura’ do que o homicídio premeditado.
Deliberado? Sim, deliberado: no site do jornal, entre as muitas manifestações de internautas sobre o tema, as críticas à cobertura simplesmente não foram publicadas.
E o que deveria ter feito o jornal: participado da acusação? Não: aí cometeria outro erro, violando os direitos do acusado. Apenas deveria ter relatado os fatos. Quem decide a culpa do réu é a Justiça. O jornal noticia e procura comprovar aquilo que noticia – o que inclui a prova de que certas doenças realmente existem.
As pressões e a contrapressão
Autoridade, definitivamente, só gosta de um tipo de jornalista: o jornalista a favor, o chapa-branca. Os outros são detestados. Um excelente jornalista, Adib Muanis, hoje na chefia de reportagem da TV-Tem de São José do Rio Preto, afiliada da Rede Globo, conta uma história ocorrida em Conceição do Araguaia, no Pará, nos anos 1980.
‘Numa sessão da Câmara, os vereadores bateram boca e um deles levou uns sopapos. Publiquei a história. O vereador que apanhou ficou indignado ao se ver exposto naquela situação vexatória, numa região onde o cara atira só para ver de que lado a pessoa alvejada vai cair. Mandou uma carta para o jornal, cheia de machismos, que terminava assim: `(…) porque em homem não se bate´.
‘A carta foi publicada na íntegra com o título `Vereador que apanhou diz que em homem não se bate´. Ele, definitivamente, não gostou.’
Quem governa
Comecemos mostrando nossas ligações: Jerson Kelman, personagem desta nota, é primo do colunista. Além de primo, Jerson Kelman é um dos grandes especialistas brasileiros em água e energia elétrica. É Ph.D (daqueles de verdade), tem prêmios internacionais, dirigiu a ANA, Agência Nacional de Águas, e a Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica.
Kelman está lançando um livro, Desafios do regulador (Associação Comercial do Rio, 8 de outubro, 12h30). No capítulo 24, narra como um promotor tentou intimidá-lo e comandar seu trabalho na Aneel. O promotor, que quando quer trocar uma lâmpada deve precisar chamar um eletricista, quis determinar como a agência especializada deveria se portar; e, sem ter tido um voto, tentou impor ao governo eleito a linha administrativa que mais apreciava. Para reforçar sua posição, acusou uma pessoa notoriamente honrada de ‘improbidade administrativa’. Vale a pena ler no mínimo este capítulo. É uma lição de como os leigos tentam atrapalhar o trabalho dos profissionais.
Um belo livro
E, já que falamos em coisas que valem a pena ler, procure não perder o livro Faróis Estrábicos na Noite, de Cecília Prada. São 13 contos muito bem escritos, por uma escritora de vida interessantíssima: foi diplomata, teve que deixar a carreira porque se casou com outro diplomata, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo de 1980 com uma reportagem para a Folha de S.Paulo, é tradutora e boa ficcionista. Faróis… é seu quinto livro de ficção, pela editora Bertrand Brasil. Comentário de outro grande escritor, Alberto da Costa e Silva, no prefácio do livro:
‘Se já era a dona de sua prosa, não lhe basta, neste novo e esplêndido livro, nos tornar testemunhas ou cúmplices de suas histórias: apodera-se de nós e faz com que nossas mãos se confundam com as mãos de quem as escreve.’
Jornalista é tão…
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP) anunciou a extinção de 500 cargos na Casa. Quando? Não queira saber demais: serão extintos, pronto. Algum dia. E a imprensa, boazinha, deu a notícia sem maiores apurações.
Um pouco de pesquisa mostraria que o Senado, efetivadas as demissões, continuará com pouco menos de nove mil funcionários, entre efetivos (contratados por concurso), comissionados (escolhidos sem concurso) e terceirizados. Dá pouco mais de cem funcionários por senador – repetindo, pouco mais de cem funcionários por senador. Deve ser por isso que tanta gente dá expediente na casa dos senadores, ou em sua base eleitoral, ou faz viagens de estudos: se todos comparecessem ao Senado, a lotação seria muito grande.
…bonzinho
A imprensa publicou também, sem qualquer análise mais profunda, a frase do empresário Eike Batista sobre o presidente Lula: ‘Lula é um presidente dos deuses’.
Eike entende de alguns deuses: foi casado com uma deusa do charme e da beleza, Luma de Oliveira, e deu a um de seus filhos o nome de um deus nórdico, Thor. Mas essa história de presidente dos deuses, só para agradar Sua Excelência, é mais complicada. O primeiro presidente dos deuses, o grego Cronos (o Tempo), tinha o feio hábito de devorar os próprios filhos. Sua esposa, Rhea (filha de Urano, o Céu, e Géa, a Terra), conseguiu salvar um dos filhos, Zeus. Zeus se revoltou contra o pai, assumiu seu lugar como presidente de todos os deuses e o aprisionou nos abismos do Tártaro, aliás local de origem de um influentíssimo assessor palaciano. Casou-se com a própria irmã, Hera. Tudo gente fina.
Tudo como dantes
Muitos protestos pelos cursos rápidos de jornalismo que andaram aparecendo por aí, após o fim da obrigatoriedade do diploma. Mas isso é coisa antiga: a jornalista Rosi Mallet, aliás competentíssima, desenterrou um anúncio antigo, de mais de 50 anos, sobre cursos de Jornalismo em seis meses ‘para a mulher moderna’. O curso, dizia o anúncio, tinha professores como Carlos Lacerda, Nelson Rodrigues, Pedro Dantas, Danton Jobim, Newton Carlos, Gilda Chataignier, tudo gente de primeiro time (e que provavelmente nunca soube que estava dando aulas no tal do curso).
Picaretagem sempre existe, com diploma ou sem diploma. Não andaram aparecendo por aí uns doutorados genéricos, en que la garantía del currículo soy yo?
Como…
De um grande jornal:
**
‘A medida foi tomada para acabar com a polêmica em torno da utilização do Santos Dumont, em São Paulo’.Seria uma notícia excelente, se Santos Dumont não fosse no Rio.
…é…
De um portal noticioso ligado a grande grupo de comunicações:
**
‘A exposição ficará no local até 32 de outubro’
…mesmo?
De um importante jornal online:
**
‘Dois mortos são mortos em tiroteio em |Jacarepaguá’E dizem que os mortos que foram mortos eram também falecidos.
E eu com isso?
Há quem ache fútil a leitura do noticiário das celebridades. Errado: o frufru chega a ser instrutivo. Veja como é possível aprender alguma coisa:
**
‘Gaetano Lopes: `Eu nunca fiquei grávido´’**
‘Americana engravida durante gravidez’No mesmo tipo de noticiário, descobre-se que certas pessoas são flagradas. Estarão fazendo algo proibido? Haverá sexo no meio? Não:
**
‘Justin Timberlake é flagrado devorando doce’E fica-se sabendo muito a respeito de hábitos que talvez consideremos estranhos:
**
‘Megan Fox não voa sem Britney Spears’**
‘Preso britânico fica bêbado com álcool gel contra gripe suína’**
‘Courtney Love sai no tapa com um homem em banheiro de festa’**
‘Mischa Barton sai de cara lavada’**
‘Por engano, Cloney para no dentista após quebrar a mão’E ficamos conhecendo os curiosos procedimentos judiciais do exterior:
**
‘Gisele Bündchen e marido são processados por tiros’
O grande título
Há títulos amplos:
**
‘Lula defende clima na ONU’Tudo bem, mas qual clima mereceu a defesa de Sua Excelência? O chuvoso? O quente e seco? Talvez úmido e com vento?
Há frases (embora não sejam títulos) que despertam a malícia do duplo sentido – como esta, de um edital:
**
‘O banco será ativo na ponta’E títulos meio esquisitos, que se não tivessem saído em noticiosos sérios não seriam dignos de crédito:
**
‘Perus atacam mulher e filho em Nova Jersey’Todos esses títulos saíram meio por acaso. O grande título da semana foi feito deliberadamente para chamar a atenção:
**
‘CVM multa Pinto Rôla’É a primeira vez que um pleonasmo é multado.
******
Jornalista, diretor da Brickmann&Associados