Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Receita americana questiona veículos sem fins lucrativos

O futuro das organizações de mídia sem fins lucrativos esbarrou num obstáculo inesperado, na agência que determina seu status de isenção de impostos: a Receita. Organizações de mídia sem fins lucrativos que se candidatem ao status de isenção de impostos passaram a enfrentar longas demoras enquanto a Receita as analisa todas, em conjunto, para avaliar precedentes de jurisprudência e estudar se estão inseridas na seção 501(c)(3) do Código do Imposto de Renda, cláusula que avalia se tal organização se enquadra na isenção. Enquanto a proteção aos animais e o “patrocínio de competições esportivas nacionais ou internacionais de caráter amador” estão listadas como atividades isentas de impostos na cláusula 501(c)(3), o jornalismo não está e, historicamente, a posição defendida pela agência é de que jornais ou publicações semelhantes são empresas comerciais.

Vejamos o caso do San Francisco Public Press. O jornal não aceita publicidade. É dirigido por voluntários e não tem assalariados. Faz a cobertura de políticas públicas locais, entretenimento e avalia restaurantes. Perde dinheiro e é subsidiado por doações e bolsas de fundações. Mas a Receita recebeu a candidatura há quase dois anos e ainda não deu uma resposta.

Pelo menos três outras novas entidades de mídia sem fins lucrativos também foram apanhadas nas demoras de um ano da Receita, tornando ainda mais longas as possibilidades de espera pelas novas publicações. E um ex-diretor da divisão de organizações isentas de pagamento de imposto da Receita diz que a agência parece mais voltada para a posição de que a mídia tradicional não atende aos requisitos de uma atividade sem fins lucrativos. Um porta-voz da Receita, embora se recusando a fazer comentários sobre o que a agência está reavaliando ou quanto tempo levará até que defina sua determinação, diz que os pedidos da mídia sem fins lucrativos “foram centralizados em nosso escritório em Washington e está sendo avaliada a sua consistência”. Steve Beatty, editor administrativo do recente jornal investigativo The Lens, de Nova Orleans, que solicitou isenção há mais de um ano, diz: “Disseram-nos que nosso pedido será analisado em profundidade, até a mão direita de Deus.”

Precedente de jurisprudência

Há décadas que as generosas margens de lucro da indústria jornalística fundaram a maior parte das reportagens investigativas e locais do país. Mas com a implosão desse modelo administrativo ao longo dos últimos anos, os jornalistas procuraram outras formas de manter o tipo de reportagens de interesse público que se perdeu. Os pensadores do jornalismo, assim como os profissionais, buscaram na mídia sem fins lucrativos uma alternativa para preencher a lacuna deixada pela diminuição das equipes de Redação. Se o bom jornalismo vai perder dinheiro, de acordo com essa teoria, então as doações que possam ser deduzidas dos impostos poderão compensar a diferença.

O San Francisco Public Press pediu o status de isenção de impostos em janeiro de 2010 e achava que sua provação seria uma mera formalidade. O jornal conseguiu patrocínio financeiro, uma organização sem fins lucrativos que age como uma espécie de ponte de isenção de impostos para as entidades que aguardam uma decisão, e foi à luta, cobrindo transporte, habitação e sem-teto, ao mesmo tempo em que também colaborava com outras organizações de mídia sem fins lucrativos, como a KQED, a maior emissora pública de rádio do país. Porém, após meses de espera, a Receita juntou seu pedido com os de outros sites, como o The Lens, ao qual a agência já comunicou que o considera um precedente de jurisprudência. Isto torna a coisa confusa, pois existem dúzias de organizações de mídia sem fins lucrativos que foram aprovadas pela Receita – muitas delas com isenção de impostos há décadas. A ProPublica, o MinnPost e o Voice of San Diego ganharam uma ampla atenção e reconhecimento pela indústria jornalística nos últimos anos.

Mas a National Public Radio é uma entidade sem fins lucrativos há muito tempo, assim como National Geographic, Mother Jones, Consumer Reports, The American Spectator, o Center for Public Integrity e a revista Columbia Journalism Review.

Remoção da palavra “jornalismo”

A publicação The Austin Bulldog fez o pedido de isenção de impostos em agosto de 2009 e recebeu a aprovação da Receita seis semanas depois. O Projeto Veritas, do agente provocador conservador James O’Keefe III, famoso por humilhar a Acorn e por usar práticas jornalísticas dúbias (que, num caso, levou O’Keefe a ser condenado por violação), entrou com o pedido muito tempo depois de dois dos pedidos de isenção que aguardam resposta, mas a Receita aprovou-o há vários meses, algo que irrita aqueles que praticam um jornalismo correto. “É frustrante saber que ficamos pendurados nisso. Fico pensando o que teria acontecido se tivéssemos feito a solicitação alguns meses antes”, diz Steve Beatty.

O que mudou?

A explosão da atividade em jornais sem fins lucrativos entre 2008 e 2009 chamou a atenção da Receita, diz Marcus Owens, advogado da firma Caplin & Drysdale e ex-diretor da divisão para organizações isentas de impostos da Receita – que decide quais ganham o status 501(c)(3). A agência trata de dezenas de milhares de pedidos de isenção de impostos por ano, em seu escritório de Cincinnati. A maioria deles é resolvido, de maneira geral, em dois ou três meses, mas aqueles que sugerem novas abordagens são arquivados e enviados para Washington, para posterior avaliação. A Receita sinalizou a mídia sem fins lucrativos devido às crescentes solicitações de isenção de impostos e porque, historicamente, sempre resistiu em dar aos jornais ou publicações semelhantes o status de isenção de impostos, diz Marcus Owens.

Embora o jornalismo seja sacrossanto para fins constitucionais, não o é para a Receita, que não o considera uma atividade necessariamente isenta de impostos. Kevins Davis descobriu isso em julho de 2010, quando entrou com o pedido de status de entidade sem fins lucativos para a Investigative News Network, organização que dirige e representa 60 publicações sem fins lucrativos. “Ocorreram exigências extraordinariamente difíceis, de longo alcance e, a nosso ver, excessivas”, diz Davis. “A Receita sugeriu, evitando por antecipação, que modificássemos nossos procedimentos, mudássemos nossas políticas e modificássemos cláusulas no sentido de remover a palavra ‘jornalismo’, pois não se trata de uma causa de caridade.”

Receita voltou atrás

Uma vez que a imprensa não é especificamente citada no estatuto da Receita, as organizações de mídia sem fins lucrativos argumentaram junto à agência que o jornalismo é uma atividade educativa, a qual é especificada como atividade isenta de impostos. Mas a agência sempre adotou uma visão bastante estreita em seu entendimento de “educativo”. A informação deve ser para “a instrução do público no que se refere a assuntos úteis aos indivíduos e que beneficiem a comunidade”, segundo a Receita, e não se refere tanto a jornalismo quanto se poderia pensar.

“A Receita defende, há bastante tempo, a posição de que um jornal comum não é educativo, de que deveria ter algo mais… – a palavra nunca foi pronunciada, mas suspeito que seria ‘acadêmico’”, diz Marcus Owens. “Uma revista como a Foreign Affairs é isenta de impostos porque é educativa, enquanto um jornal comum descreve um acontecimento, mas sem qualquer intenção de educar o leitor. Um jornal tipicamente comum tem publicidade, o que parece e se sente como uma atividade comercial – e a Receita não abre mão disso.” Há poucos anos, Owens representava um grupo – cujo nome ele não quis revelar – que queria transformar um jornal de uma pequena cidade num veículo sem fins lucrativos e passar a ter como foco mais as questões de cidadania do que as notícias do dia-a-dia. “Com o objetivo de fazer a Receita reavaliar sua opinião histórica, esta seria uma boa opção”, diz Owens. “Mas a Receita nem foi lá e a organização acabou desistindo.”

Esta não foi a primeira vez que a Receita bate de frente com entidades de mídia sem fins lucrativos. Há trinta anos, a Receita comunicou à revista Mother Jones que estava revogando seu status de isenção de impostos porque não percebia qualquer diferença entre aquela e qualquer outra publicação comercial. Posteriormente, a Receita voltou atrás, mas não se comprometeu com um precedente que poderia revelar como determinar o status de isenção de uma organização jornalística. A Mother Jones, pelo menos, tinha publicidade e vendia assinaturas. Os jornais San Francisco Public Press e The Lens não o fazem (Steve Beatty diz que a Receita questionou sua relação com uma afiliada local da Fox que cedia um espaço à pequena organização e foi sua parceira em algumas matérias. Atualmente, The Lens paga aluguel).

“Por onde anda o Newspaper Tree?”

Ao procrastinar a aprovação de novas publicações sem fins lucrativos, a Receita dificulta a possibilidade de superarem a fase inicial e preencherem a lacuna deixada por enfraquecidos jornais com fins lucrativos. Mas é difícil quantificar os danos, diz Michael Stoll, diretor-executivo do San Francisco Public Press. Muitos dos apoiadores veem a coisa com outros olhos se você não consegue passar a fase de se tornar uma organização independente. E também lhes dá mais trabalho de pesquisar se você está agindo corretamente. Acredito que vamos perder muito dinheiro por causa disso.”

The Lens, que recebe apoio financeiro do Center for Public Integrity enquanto espera pela aprovação, enfrenta um desafio específico. A Comunidade das Igrejas Batistas, maior fundação de Nova Orleans, não doa dinheiro a organizações que tenham patrocínio financeiro.

Brant Houston, chefe do departamento de Reportagens Investigativas da Universidade de Illinois, vê as dificuldades em primeira mão como presidente da Investigative News Network, mas também através das lutas empreendidas por seus sócios potenciais. “Algumas dessas publicações poderão acabar sucumbindo porque é difícil conseguir doações se você não tem o status de isenção”, diz ele.

Para o jornal Newspaper Tree, de El Paso, os atrasos da Receita significam que ele simplesmente não é publicado. A Community Foundation de El Paso comprou-o depois que seu dono – quando, então, era um jornal com fins lucrativos – desistiu, pois o jornalismo institucional da comunidade estava enfraquecido. “As pessoas ligam pedindo o jornal. ‘Por onde anda o Newspaper Tree? Nós precisamos dele, precisamos dele’”, diz Eric Pearson, presidente da fundação. Mas como o custo para rodar o jornal sem o status de isenção de impostos é calculado em 200 mil dólares por ano, seus advogados aconselharam a suspensão da publicação.

O futuro depende de Washington

Embora seja absolutamente possível que a Receita se pronuncie favoravelmente a todas essas organizações sem fins lucrativos que estão aguardando, e talvez mesmo estabelecer um precedente oficial que abra o caminho para futuras publicações, Marcus Owens, ex-diretor da divisão de isenção de impostos da Receita, não está otimista. “É concebível que a Receita altere sutilmente sua posição”, diz ele. “Mas acredito que o resultado mais provável é a Receita deixar do jeito que está.”

A ideia da Receita determinar regras levanta, obviamente, questões relacionadas à Primeira Emenda. A Receita proíbe que organizações de mídia sem fins lucrativos apoiem candidatos, além de outras restrições legais. Um problema está no fato de a agência decidir, na prática, se um veículo da mídia pode ou não existir. O incidente com a Mother Jones, que ocorreu no início do governo Reagan, acompanhado pela investigação de outras publicações de esquerda, levantou questões quanto à interferência política. E há algo de improvável no fato de a Receita comunicar a um veículo de mídia que deve remover a palavra “jornalismo” de seu estatuto.

O que seria necessário para garantir um futuro estável para a mídia sem fins lucrativos seria que o Congresso e o presidente aprovassem uma nova cláusula do estatuto, isentando especificamente de impostos as organizações jornalísticas não comerciais. E isto já foi feito em relação a outras importantes instituições norte-americanas, como os sindicatos e os fundos de pensão. Também estão gravadas, como casos específicos de isenção, atividades que não foram consagradas na Constituição, como clubes sociais e recreativos (501(c)(7) e empresas funerárias (501(c)(13). Em seu relatório enviado neste verão à Comissão Federal de Comunicações, Steven Waldman aponta a criação de uma nova categoria como solução para as questões relacionadas à mídia sem fins lucrativos.

Caso não se materialize uma ação por parte do Congresso, a pressão política sobre o Departamento do Tesouro poderia facilitar uma determinação favorável, diz Marcus Owens. O litígio também é uma opção, embora implique um apoio de alto custo. O preço de uma ação poderia chegar à casa de 1 milhão de dólares e é óbvio que os veículos de mídia sem fins lucrativos não poderiam pagar.

Até então, o futuro da mídia sem fins lucrativos irá depender, em grande parte, das decisões do escritório da Receita em Washington.

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Leia também

The Chronicle of Philanthropy: Nonprofit News Outlets Face Long Waits for IRS Approval.

The Nonprofit Times. Backlog, Precedent Stall Tax-Exempt Status of News Groups.

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[Ryan Chittum é jornalista]