Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Reportagens estimáveis

Assunto relevante como poucos, o confronto entre “velha mídia” e “mídia cidadã”, exacerbado por narrativas a respeito do atentado em Boston, será deixado de lado aqui, em benefício do elogio da apuração competente, que leva ao leitor informações relevantes e dissociadas das expectativas de personagens ou fontes das reportagens.

Louvem-se os repórteres diligentes e os bem-formados, o que implica contrastá-los com os preguiçosos e os despreparados. Melhor seria referir-se a cada evento, porque o mesmo jornalista criterioso de ontem pode ser o relaxado de amanhã. Mas, em geral, repórter bom não produz material de categoria inferior. Às vezes, sua concepção é contrariada pelo critério editorial adotado a jusante.

Duas reportagens recentes merecem louvores. Entre outras razões, porque se trata de construções jornalísticas autônomas, independentes de investigações alheias (feitas por policiais, promotores, auditores etc.).

Padrão desejável

Não há nelas nada de espetacular, não vão concorrer a prêmios. Ao contrário, são rotineiras, usuais. Sóbrias. O pão nosso de cada dia. Por isso mesmo, servem para exemplificar um padrão que, se fosse consistentemente seguido, elevaria a qualidade dos periódicos.

A primeira, pela cronologia, é da Folha de S. Paulo de 21/4, sob o título “PMs do Carandiru são condenados a 156 anos de prisão”. A reportagem, publicada num domingo, a respeito de fato conhecido na madrugada do mesmo domingo – a redação foi ágil o suficiente para colocar a notícia na manchete da edição São Paulo –, sintetiza com grande propriedade a lógica histórica e política do massacre.

A marca da Rota

Os repórteres Talita Bedinelli, Rogério Pagnan e Leandro Machado selecionaram, entre os argumentos da promotoria, as seguintes passagens:

[O promotor Márcio Friggi] “Mostrou que parte dos mortos nem deveria estar no Carandiru, pois já tinha direito ao regime semiaberto. Também afirmou que a maioria era parda, pobre e jovem – características que, disse ele, são as mais comuns em mortos pela Rota”.

“Os promotores mostraram ainda que só três réus não tinham nenhuma morte na ficha. Um PM já havia matado 23 pessoas. Outro havia sido investigado por ter atirado na perna de um menor de idade suspeito de furtar merenda”.

Esquadrões vs. PCC

Para quem acompanha com alguma atenção o cenário da (in)segurança pública paulista e brasileira, essa caracterização dos réus reitera e reforça a consciência dos mecanismos perversos que produzem a matança lenta e inexorável de centenas de pessoas, a cada ano, vítimas de organizações rivais.

De um lado, os esquadrões da morte policiais, “milicianos” ou de outra natureza. De outro, organizações criminosas como o  PCC, que cresceram em função da situação carcerária sintetizada com propriedade na segunda-feira (29/4) pelo ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, em entrevista à coluna Direto da fonte, de Sonia Racy, no O Estado de S. Paulo (“A redução da maioridade penal só favorece o crime”).

Em outras palavras, a origem administrativa da continuada mortandade (pesam fortemente, também, questões socioeconômicas, culturais e ligadas ao imaginário coletivo) está no próprio aparelho de Estado, hoje produtor da insegurança e do medo, que levam uma maioria de cidadãos a pedir mais repressão e mais encarceramentos.

Punições retaliatórias

E mais não se reivindica porque cláusulas pétreas da Constituição impedem a reintrodução da pena de morte para civis, como houve no Império e durante a ditadura militar, e os castigos corporais previstos no Código Criminal de 1830, o primeiro da nação independente.

Mais repressão ao estilo da Rota paulista, e mais encarceramentos, são o combustível que alimenta o ciclo.

Por que essas políticas perduraram a despeito do processo de redemocratização do país, prestes a completar sua terceira década? Porque foram e são politicamente convenientes para os detentores do poder. Não por acaso um ex-governador, Luiz Antônio Fleury Filho, e um ex-secretário de Segurança, Pedro Franco de Campos, foram arrolados no processo como testemunhas da defesa.

Com base na mesma lógica, calçada em pesquisas de opinião, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anuncia a incorporação de novos soldados à Polícia Militar e novos delegados à Polícia Civil, e encaminha ao Congresso uma proposta de redução da maioridade penal.

Observatório na TV

No programa de TV do Observatório da Imprensa de terça-feira ("Maioridade penal, o debate inconcluso", 30/4), o vereador da capital paulista Ari Friedenbach (PPS, pai da jovem Liana Friedenbach, assassinada em 2003 com o namorado Felipe Caffé), reiterou que é contra a redução da maioridade penal. O que ele defende é, em casos de assassinato, estupro, etc., a partir de 12 anos de idade do autor, após exame por uma junta psiquiátrica, emancipar o menor para que seja julgado. Condenado, deveria cumprir pena em unidade especial da Fundação Casa e, caso a pena excedesse três anos, ser transferido para o sistema prisional comum ao completar 18 anos.

Aparente solução de compromisso entre o sentimento de revolta e a consciência de que o “olho por olho, dente por dente” foge completamente aos padrões civilizatórios formalmente pretendidos pelo ordenamento jurídico do país, é maneira enviesada de ceder ao clamor “justiceiro” que periodicamente ganha a berlinda no noticiário.

Desde 1990, resposta inepta

Em décadas mais recentes, esse mecanismo data do sequestro do empresário Rubens Medina (junho de 1990), que levou o Congresso a aprovar de afogadilho a lei dos crimes hediondos (julho de 1990), sucedido pelo assassinato da atriz Daniella Perez (dezembro de 1992), que motivou 1 milhão de pessoas a assinar proposta de endurecimento da mesma lei defendida pela mãe de Daniella, a novelista Glória Perez, e resultou em sua aprovação no Congresso.

No programa do Observatório na TV, a antropóloga Alba Zaluar e a jornalista Sylvia Moretzsohn manifestaram-se contra a redução da maioridade penal. A riqueza do debate, é claro, não se reduziu a respostas alternativas a favor ou contra essa mudança constitucional, que o ministro Cardozo e outros entendem ser impossível, porque, insista-se, afrontaria cláusula pétrea da Carta de 1988.

O candidato Skaf

A segunda reportagem caprichada está no Estado de S.Paulo de domingo (28/4), sob o título “Skaf já ensaia voo de candidato em SP”, assinada por Julia Duailibi e Ricardo Brandt. Descreve a explícita apropriação indébita da marca e da máquina da Fiesp por seu presidente, Paulo Skaf, em benefício de pretensões políticas pessoais.

Nem partidárias são, porque Skaf, como está no texto, concorreu a governador de São Paulo em 2010 pelo PSB e agora, diante da derrocada imposta ao pretendente a candidato pelo PMDB Gabriel Chalita, devido a denúncias de corrupção, está prestes a conquistar essa vaga no partido de Michel Temer.

Os jornalistas informaram que Skaf exibiu em programa do PMDB realizações da Fiesp sob sua batuta, e pelo Sesi/Senai (organizações que, com a Federação das Indústrias, integram o Sistema S), contratou em 2012 os serviços do publicitário Duda Mendonça (à razão de R$ 2,6 milhões mensais). Certamente o fato de Duda ser um especialista em campanhas eleitorais é mera coincidência, tendo pesado na escolha sua reconhecida competência profissional.

A reportagem menciona campanha nacional de TV lançada em março pela Fiesp “para falar sobre o desconto na conta de luz, outra bandeira defendida por ele”. Em sua fala, Skaf incluía a passagem: “Com muita luta, conseguimos baixar o preço da conta de luz para todos os brasileiros”. Ficou caracterizada, assim, a politização do tema.

Infelizmente, os repórteres reproduziram sem contraponto o argumento de Skaf segundo o qual o estado de São Paulo, com um orçamento maior do que o da Argentina (para populações da mesma ordem de grandeza, 42 milhões de habitantes), pode ter uma administração melhor. Que pode, pode. Mas a comparação é retórica, não substantiva.

Vícios de sempre

O mínimo senso de realidade exige, ao mesmo tempo, registrar que o jornalismo impresso está longe de ser “mocinho” nesse enredo.

Informações questionáveis são publicadas com frequência, embora a possibilidade de desmentidos contundentes na internet tenha refreado nos últimos anos os impulsos das redações à irresponsabilidade (na maioria dos casos, porém, o que se vê na rede é a propagação adjetivada de notícias sem fundamento). O mais grave, na verdade, não é o que se publica, mas o que se omite – nem sempre por vontade própria.

É preciso ter consciência de que a grande imprensa, a despeito de sua inestimável importância, faz, antes de tudo, o jogo do sistema de poder. Na esfera federal, trata-se do duopólio em que repousa a alternância PT-PSDB.

O sistema de poder, entretanto, visto com mais recuo, inclui os contrapoderes, que também encontram algum espaço nos grandes jornais (mas muito pouco nas revistas mais influentes e quase nada na TV aberta). Sem isso, não se poderia dizer que vigora no país um regime democrático.

Aflige ver como a reiteração de ideias gastas e preconceitos passa de uma geração a outra de jornalistas, sem que a universidade seja capaz, em muitos casos, de fornecer aos que chegam ao mercado de trabalho a indispensável a bagagem crítica necessária à observação, na vida profissional, de preceitos de cidadania indutores de uma transformação mais democrática do país, com maior igualdade de direitos e oportunidades.

Mas a leitura de reportagens lúcidas, questionadoras dos poderes, é sempre um alento. E faz lembrar que o caminho do fortalecimento da “velha mídia”, se não prescinde de um hábil plano de negócios, inclui necessariamente a cláusula da qualidade.