Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Roteiro para o show da morte

O acidente é na outra pista, mas o trânsito pára em ambas: numa, pelo desastre; na outra, pela curiosidade dos motoristas, ansiosos por ver sangue correndo, órgãos expostos, a agonia de alguém que, há instantes, estava feliz e saudável.

Morbidez. E é morbidez, também, a autorização para transmissão pela TV do julgamento de Suzane Richthofen, ré confessa de participação no assassínio de seus pais. Não há outra explicação possível: um julgamento não é um espetáculo, não pode ser um espetáculo. Por que tentar transformá-lo em reality show? Por que colocar, ao vivo, o Big Killer Brasil?

Haverá quem argumente que, sendo o julgamento público, não há por que impedir a transmissão ao vivo, em cores, via satélite. Uma execução também é pública, tanto que há testemunhas do fato; e não é transmitida para o mundo. Pode-se dizer que o julgamento serve como exemplo e, portanto, deve ser divulgado o mais amplamente possível, para atemorizar quem pense em cometer crimes. Não é bem assim: Tiradentes foi enforcado em público, seu corpo esquartejado foi pendurado nas ruas, ‘para escarmento’, e poucos anos depois veio a Independência do mesmo jeito.

Transmitir julgamentos pela TV é, guardadas as proporções, imitar aquilo que condenamos em ditaduras como a chinesa: execuções sumárias em estádios, em praças públicas. É repetir a Justiça romana, que expunha os crucificados ao longo das estradas. De lá para cá, o mundo evoluiu. E o Brasil quer voltar no tempo.



A fama, a fama

E há, naturalmente, o problema seguinte. Da mesma forma que andar devagar olhando para o acidente pode provocar outros acidentes, garantir fama televisiva para quem comete crimes pode incentivar outros crimes. Há gente que faz tudo para aparecer na TV, mesmo que isso seja a última coisa que faça na vida. Se até parlamentares se matam para ficar em frente às câmeras, imagine um cidadão comum – ou, melhor ainda, um maluquete desses que a gente conhece!



Superdose de bola

A Copa ainda nem começou e já vemos na imprensa amplas reportagens sobre a unha encravada do Ronaldinho Gorducho. O caro leitor não perde por esperar: ainda veremos na TV reportagens sobre o nascer do Sol na concentração da seleção brasileira, em que será explicado que o fenômeno se repete diariamente e que – claro! – o formato solar lembra uma bola.



Subdose de bola

Já faz oito anos, caro leitor. Os personagens, todos, estão vivos e falantes, têm amigos, ex-amigos, têm parentes, têm ex-esposas, empresários, ex-empresários, conversam frequentemente com repórteres, são íntimos de alguns jornalistas. E ninguém, até hoje, contou a verdadeira história do peripaque do centro-avante titular da seleção brasileira no dia em que perdemos a Copa de 98 para a França.



O milagre da bola

Este colunista conta o milagre mas não conta o santo. Num importante portal de internet, o sexto gol do Brasil contra aquele combinado suíço foi feito por dois jogadores. Está escrito: Kaká/Juninho, 26min. (2ºT). Os outros gols, segundo o portal, foram feitos daquele jeito que a gente conhece, por um jogador só.



Ditadura, não

Algum idiota está distribuindo, pela internet, um manifesto em favor da ditadura militar. Não sabe o que diz: durante a ditadura, o Brasil tinha todos os problemas de hoje, mais a inflação, mais a falta de liberdade. Outros idiotas dizem que não adianta deixar o povo votar, pois escolhe, como na Palestina, alguns fanáticos para dirigi-lo – e como enfrentá-los, se foram eleitos democraticamente?

Há um erro nesse raciocínio: democracia não é apenas o predomínio da vontade da maioria. É isso, também; mas é o regime do respeito aos direitos das minorias, é o regime de proteção da liberdade. Se não há liberdade – de imprensa, de culto, de preferência sexual, de expor as diferenças – não há democracia.

Um excelente artigo de um brilhante jornalista, Ali Kamel, foi publicado em O Globo. É leitura obrigatória, e está transcrito abaixo.

Democracia

Ali Kamel

Copyright O Globo, 30/5/2006

Entre os críticos dos EUA, virou rotina debochar do seu anunciado apoio à instalação de regimes democráticos no mundo. Diante da vitória do grupo terrorista Hamas nas eleições palestinas, da radicalização do Irã depois da vitória de Mahmoud Ahmadinejad e do que ocorre hoje na Venezuela, com Chávez, e na Bolívia, com Evo Morales, é comum ouvirmos que o feitiço virou contra o feiticeiro: ‘Os EUA falam em democracia, mas, quando o resultado das urnas lhes desagrada, torcem o nariz’, dizem. Quando Condoleeza Rice diz que uma democracia não se resume a eleições, fazem piada. E, no entanto, Condoleeza está com razão.

Certamente, não existe democracia sem eleições, mas o alicerce de todo regime democrático é a crença de que a liberdade é um valor absoluto, inquestionável, direito inalienável de todos os homens. E ela vem sempre desacompanhada de adjetivos: não pode haver uma liberdade burguesa, uma liberdade socialista, uma liberdade proletária, uma liberdade mais ou menos. Liberdade, enfim, é o direito mais básico que uma democracia tem de garantir. Portanto, democracia alguma no mundo pode admitir movimentos políticos cujo programa preveja o cerceamento da liberdade. Trata-se de um princípio básico de autodefesa.

É por isso que em democracias consolidadas é impensável admitir que partidos com propostas totalitárias participem de eleições. Na Alemanha, apenas para citar um exemplo, o partido nazista, seus símbolos e o livro-programa de Hitler, ‘Minha luta’, são proibidos. Também no Reino Unido, nos EUA, na França etc., não podem avançar partidos que prevejam a destruição dos princípios democráticos, que defendam o fechamento do Congresso, a mudança radical no relacionamento entre os poderes, o redesenho das leis eleitorais de modo a perpetuar um partido no poder.

Eleição nenhuma dá direito a que a liberdade seja restringida. Porque as gerações atuais, mesmo dispostas a abrir mão da liberdade, não podem tirar esse direito das gerações futuras. Esse é o princípio que rege as democracias.

O que explica, então, Chávez, Hamas e movimentos semelhantes é o pouco valor dado ao conceito de liberdade em grande parte dos países. A rigor, o que se tem na Autoridade Nacional Palestina não é uma democracia, mas apenas o povo votando. O Hamas é porta-voz de uma ideologia religiosa radical, que prevê a instalação de uma teocracia, em que valerá não a vontade do povo, mas a vontade de Deus, obviamente interpretada por um grupo de religiosos pretensamente iluminados. Num regime de fato democrático, sua participação num processo eleitoral seria indevida, porque seu programa de governo é incompatível com a democracia. Não há, portanto, nenhuma incoerência em apoiar a democracia e repudiar a vitória do Hamas.

Chávez é a mesma coisa. Chegou ao poder numa eleição democrática, em 1998, mas os passos que tomou dali em diante foram ilegítimos. Eleito com 56% dos votos, mas numa eleição cuja abstenção foi de 40% (à época, o voto era obrigatório), Chávez encontrou um Congresso oposicionista, eleito democraticamente apenas um mês antes. O que fez? Tratou de planejar a eliminação daquele Congresso, convocando, ilegalmente, um plebiscito para autorizá-lo a convocar uma Constituinte. O Congresso tentou resistir, mas uma Suprema Corte titubeante, para agradar a Chávez, acabou não somente autorizando o plebiscito, mas dando também ao Executivo o direito de ditar as regras eleitorais, caso a Constituinte fosse aprovada. Com regras feitas de molde a lhe garantir a vitória, Chávez teve a sua Constituinte, e, de lá para cá, sempre com índices de abstenção altíssimos, algumas vezes superiores a 60%, e com regras sempre feitas para lhe beneficiar, foi ‘vencendo’ eleições e mudando o país a seu bel-prazer. Isso não é democracia, mas um governo plebiscitário, que cerceou a liberdade de imprensa e viciou o processo eleitoral.

O Irã é outro exemplo. Muitos justificam as atitudes do presidente Mahmoud Ahmadinejad, porque ele foi eleito ‘democraticamente’, mas se esquecem de que ali nada é democrático, já que o Irã é uma teocracia. Um grupo de religiosos que comanda o país com mão-de-ferro escolhe os candidatos que podem disputar uma eleição. Assim, fosse quem fosse o ‘eleito’, o programa não seria dele, mas dos ayatolás. Caso o ‘eleito’ se desvie, será ‘legitimamente’ deposto. Se ali não há liberdade, a democracia é apenas uma aparência.

De Evo Morales não se pode esperar boas coisas. Uma Constituinte já está a caminho, e ele já se movimenta para tê-la sobre controle e moldar o país segundo os seus planos. A liberdade, ferida, tornará aquele país um simulacro de democracia.

Por tudo isso, é bobagem dizer que os EUA querem uma democracia desde que os eleitos façam o que eles querem. Não se trata disso. Em novembro de 2003, Bush fez um discurso histórico: ‘Sessenta anos com o Ocidente relevando a falta de liberdade no Oriente Médio, e se acostumando a ela, não fizeram nada para nos proteger. No longo prazo, a estabilidade não se consegue à custa da liberdade.’ Desde essa autocrítica, o que os EUA parecem querer para os outros é o que há mais de 200 anos praticam em casa: uma democracia em que ninguém tenha o direito de disputar o direito de corrompê-la. Assim como o nazismo é proscrito na Alemanha, é absolutamente coerente com propósitos democráticos imaginar democracias no Oriente Médio que sejam vacinadas contra projetos teocráticos. Isso é autodefesa.

Nós, que vivemos num regime democrático há apenas poucos anos, temos de ter isso muito em mente. É preciso que todos entendamos as regras do jogo, e que o Congresso, de um lado, e a Justiça, de outro, estejam sempre atentos para não deixar que algum aventureiro queira usar a democracia para restringi-la. [Ali Kamel é jornalista. E-mail: ali.kamel@oglobo.com.br]



Notícia boa? Não, má

Parece algo a festejar: ‘Desmatamento na Mata Atlântica cai 71% em 5 anos’. A notícia é verdadeira – mas não é boa, não: na verdade, explica o texto da matéria, ‘parte da redução se deve ao simples fato de que quase não há mais o que desmatar fora de áreas protegidas e de difícil acesso’.

E isso tem ocorrido com freqüência em nossa imprensa: os títulos (ou, na TV, a escalada de notícias) privilegia um dos aspectos do caso, e deixa o outro descoberto. Quantas pessoas prestam atenção no título e na escalada, e quantas a menos se aprofundam na notícia?



E os outros?

A entrevista de Roberto Jefferson ao Roda Viva (TV Cultura, 29/5) foi amplamente coberta. Mas, certamente por falha da pesquisa deste colunista, só encontrou alguma referência a este assunto no blog Escuta, Zé, de José Luiz Teixeira. Transcrevendo: ‘O ex-deputado ressaltou, porém, só ter estranhado por que foram poupados das investigações os ministros Ciro Gomes e Gilberto Gil, que, segundo ele, receberam, R$ 500 mil e R$ 250 mil, respectivamente, do ‘valerioduto’’.



Quem é?

A mesma notícia foi publicada em dois portais de internet, ambos importantes: tratava-se de uma senhora presa com forte estoque de ecstasy, destinado a abastecer uma grande festa de música eletrônica. No primeiro portal, a senhora tinha o sobrenome ‘de Deus’. No segundo, ‘de Jesus’. Este colunista, após árdua pesquisa, esclarece: embora pareça paradoxal, a traficante é ‘de Deus’.



Que é?

Desta vez, a mesma notícia, publicada em um só portal, deixa certas dúvidas. De acordo com o título, a Polícia Federal prendeu um cavalheiro, estrangeiro, com 10 kg de heroína. De acordo com a reportagem, a Polícia Federal prendeu um cavalheiro, estrangeiro, com 10 kg de cocaína. Após exaustivas indagações, este colunista descobriu que a diferença não é apenas de droga: é de valor, também. Heroína custa mais caro que cocaína. E a droga apreendida era heroína.



Como é?

O leitor que decifrar este título – ‘FIDC da PUC de Minas ingressa na Bovespa’ – bem que merece algum regalo especial. Que tal ouvir Blowing in the wind, com Eduardo Suplicy, e com tradução simultânea de Roberto Mangabeira Unger?



E eu com isso?

Muitas vezes o caro leitor não se surpreendeu ao lembrar que, não muitos anos atrás, se quisesse mandar um bilhete a alguém teria de levá-lo pessoalmente? Como é que a gente conseguia viver assim?

Pois é; e há outros fatos acontecendo. Como é que poderíamos viver sem saber que a atriz Vanessa Giacomo gostaria de ser homem por um dia? E a fundamental informação de que Juliana Knust passeia com o namorado pela orla carioca? Este colunista reuniu mais algumas informações da mais alta importância, sem a qual, sem dúvida, nenhum de nós poderia continuar vivendo.

1. De Ivete Sangalo: ‘Se eu não fosse cantora, rica e famosa, não sei se teria todos os homens maravilhosos que passaram na minha vida’.

Talvez a comparação seja maldosa, mas um famoso jogador de futebol, feio de doer, coleciona um elenco de esplêndidas mulheres em seu currículo. Comentário de um jornalista maldoso: ‘Se jogasse no São Cristóvão não comia’.

2. Dado Dolabella se envolve com atriz casada.

3. Mãe de Luciana Gimenez mostra sutiã em festa do SBT.

Este colunista está ficando velho. É do tempo em que Vera Gimenez era notícia por si só, e nem precisava lembrar de quem era mãe (na época, a propósito, Luciana já era um mulheraço). Vera Gimenez enlouqueceu muita gente – e se atribui um famoso infarto, de um famoso político, à paixão que teve por ela.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados