Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem explicar, imprensa atirou no colo do leitor o caso dos ferimentos da deputada Joice

Foto: Lula Marques

No tempo das máquinas de escrever nas redações, a pior humilhação para um repórter era quando um leitor ligava para perguntar o que ele quis contar na sua matéria, e não tinha conseguido. Nos dias atuais, separando o leitor do militante digital, o leitor vai para as redes sociais exigir explicações sobre o que leu e não entendeu por falta de informações na matéria. Fiz esse nariz de cera para entrar pisando macio no assunto que vou conversar. Sobre o caso da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), eleita com mais de 1 milhão de votos em 2018 para a Câmara dos Deputados, no rabo do cometa do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), que elegeu governadores e dezenas de parlamentares.

No último dia 18, o terceiro domingo de julho, a deputada acordou no banheiro da sua residência funcional, em Brasília (DF), em meio a uma poça de sangue, com cinco fraturas no rosto, mais uma em uma das costelas e várias escoriações pelo corpo. Ela não sabe como tudo aconteceu. E o seu marido, o médico Daniel França, que dormia em outro quarto da casa, também não sabe como tudo aconteceu. Ele dorme em outro quarto porque ronca à noite. Tudo isso foi registrado na Polícia Legislativa (Depol) e na Polícia Civil de Brasília. O que vai esclarecer os acontecimentos entre as quatro paredes da residência da deputada é a investigação policial. Até agora o único fato que temos são os ferimentos da parlamentar, que podem serem vistos por fotos e nos exames médicos. Esse tipo de matéria é um osso duro para o repórter porque há a versão dos envolvidos e migalhas de informações que a investigação policial deixa vazar para a imprensa com o objetivo de fazer um “balão de ensaio” e descobrir os suspeitos. É do jogo. Inclusive se corre o risco de nunca se descobrir o que realmente aconteceu dentro do apartamento funcional da deputada devido à complexidade da investigação. Nos meus 40 anos de repórter já vi acontecer isso diversas vezes. Muitas dessas histórias viraram livros ou “cases” que são contados para os alunos de jornalismo nas faculdades e nas escolas de formação de policiais. No Rio Grande do Sul, um dos mais clássicos aconteceu em 1995, na área rural de Estância Velha, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. O agricultor Olívio Correa, 56 anos na época, saiu de casa para comprar carne no açougue, a uns 500 metros da sua casa. No caminho pegou carona em carro e ficou desaparecido 24 horas. Quando foi encontrado estava no meio do mato sem os dois olhos, que haviam sido extraídos. Ele faleceu em 2010 e até hoje ninguém sabe o que aconteceu.

Trabalhei na história do agricultor. E os erros que cometemos na cobertura ajudaram a tornar esse caso insolúvel, até agora (julho/2021). No caso da deputada Joice, nós jornalistas precisamos explicar ao nosso leitor as limitações que temos para informá-lo corretamente do que aconteceu. Nós não temos como explicar o que aconteceu dentro da residência até o inquérito estar concluído ou se surgir uma fonte — confiável — que conte o rolo todo. Mas nós temos como trabalhar no outro campo dessa investigação, que é o político. A deputada foi aliada política do presidente Bolsonaro. Ela rompeu com o presidente e a família, principalmente com os três filhos parlamentares: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. A história toda pode ser encontrada na internet. Longe do núcleo do poder, a parlamentar caiu no esquecimento dos jornalistas. Vez ou outra, ela atira uma pedra na família Bolsonaro e vira notícia de pé de página nos jornais. Nas entrelinhas do que a deputada tem dito está a informação de que ela suspeita que tenha sofrido um ataque de bolsonaristas. Nada é feito no governo sem o consentimento do presidente. E todos sabem que ele usa as estruturas das Forças Armadas, da Polícia Federal (PF), da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e de um serviço particular de inteligência para resolver seus problemas políticos e pessoais – há matérias na internet. Entre os problemas que o presidente tem hoje, como a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19, a CPI da Covid, a queda na sua popularidade e a investigação de corrupção na sua família, as desavenças com a deputada são um grão de areia na praia. Então? Por que o presidente usaria o seu poder contra a deputada? A não ser que ela tenha algum trunfo na mão que se desconheça, afinal ela conviveu um bom tempo com a família Bolsonaro.

Por outro lado, a deputada Joice é uma profissional da comunicação. Ela é jornalista, ativista e muito articulada. E tem bons contatos dentro do governo e sabe o que acontece entre as quatro paredes da administração Bolsonaro. Lembramos que o presidente assumiu apoiado por grupos políticos diversificados, como nazistas, terraplanistas, neoliberais, militares saudosistas do golpe de 1964, ocultistas e oportunistas de todos os quilates. Para salvar o seu mandato, Bolsonaro aliou-se aos parlamentares do Centrão que estão espalhando pela máquina administrativa federal os seus aliados e tirando os empregos dos antigos aliados do presidente. Muitas dessas pessoas que estão perdendo os seus empregos são amigos da deputada. Colegas, tudo que escrevi não é opinião. São fatos que noticiamos e nos autorizam a alertar os nossos leitores de que uma coisa são os ferimentos da deputada, outra coisa é como aconteceu. Os ferimentos vão ser explicados pela investigação policial. O resto é um atoleiro imenso que nem trator com tração nas quatro rodas consegue passar. Muito menos um repórter calçando tênis. Claro, não podemos escrever uma tese cada vez que se faz uma notícia sobre esse episódio. Mas podemos alertar o nosso leitor que se trata de um “baile de cobra”, expressão popular usada no interior gaúcho para descrever uma situação onde ninguém é inocente. Até que prove em contrário.

Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.