Comprar contrabando ou produtos piratas com o cartão corporativo na Feira do Paraguai não pode. Hospedar-se com a esposa, filho e babá num hotel do Rio, por conta do cartão, não pode. Consertar mesa particular de sinuca com dinheiro público não pode. Mas também não se pode confundir aquilo que é ilegítimo, até criminoso, com os gastos legítimos, corretos, do cartão corporativo.
Tudo o que se disse a favor do cartão é correto: evita problemas, é mais transparente, é um avanço no controle das contas públicas (desde que seja fiscalizado, desde que não sejam nomeados ministros que acham normal comprar em free shops com dinheiro do governo).
Mas os meios de comunicação, na luta pelas denúncias mais bombásticas, estão confundindo as coisas: publicar que foram gastos quase 80 milhões de reais nos cartões corporativos não quer dizer rigorosamente nada. É muito ou pouco? As despesas foram legais ou não? Dizer que o governo paulista gastou mais em cartões que o federal não significa nada: as compras em lojas de luxo de artigos de cozinha são esquisitíssimas, e precisam ser esclarecidas (como?), mas e o resto? É ou não um escândalo? Imagine o caro colega a informação de que uma empresa estatal está comprando outra, por ‘x’ milhões de dólares. Qual o valor de mercado? Há motivo para comemoração ou para desconfiança?
A imprensa, com certa frequência, confunde o leitor. E o efeito pode ser nefasto: transforma em palavrão, em algo a ser exorcizado, uma iniciativa que, bem calibrada, é positiva para a agilidade e a transparência dos gastos públicos.
Coisas mesquinhas
Um bom exemplo da falta de sintonia dos meios de comunicação com a realidade dos fatos é a cobertura da viagem do ministro da Defesa, Nelson Jobim, à Rússia. Anuncia-se, como se fosse um escândalo, que a comitiva recebeu convites para assistir ao Balé Bolshoi (nas matérias, o preço de cada ingresso), que as despesas são pagas pelo governo russo, que os visitantes, a convite, conhecerão as maravilhas do Museu Hermitage, em São Petersburgo, que o jantar foi pago pelo famoso ouro de Moscou.
E daí? Qualquer ministro ou autoridade que visite outro país, em caráter oficial, receberá de presente uma série de gentilezas, de jantares excepcionais, com ótimos vinhos, a tours especiais pelas atrações turísticas da região. Se o presidente russo Vladimir Putin for aos Estados Unidos, tem grande possibilidade de ficar em Camp David, de visitar o Guggenheim, de levar os netos à Disney. Ninguém imaginaria que, estando numa visita que pode eventualmente redundar em negócios, o ministro da Defesa do Brasil tivesse de levar seus acompanhantes ao McDonaldoff, só para se orgulhar de dizer que nada recebeu dos anfitriões.
Para citar o ex-presidente Sarney, não são só os cargos que têm uma liturgia: as viagens oficiais também. E ninguém pode imaginar que um ministro brasileiro tome uma decisão estratégica, que envolve alguns bilhões de dólares, porque lhe serviram um caviar de boa qualidade. Isto é minimizar as pessoas (ou, pior, significa que os repórteres aplicam a autoridades o comportamento que, em situação idêntica, julgam que teriam).
A palavra do mestre
Há alguns anos, durante as tradicionais discussões sobre que tipo de presente de Natal os jornalistas poderiam aceitar sem problemas, surgiu uma questão: alguém mandara canetas-tinteiro Sheaffer’s, muito bonitas, para um grande grupo de pessoas. O caso foi levado ao supremo condutor da empresa: Octavio Frias de Oliveira. Ele, com seu agudíssimo bom-senso, perguntou:
– Vocês acham que estão sendo comprados com essas canetas? Vocês se vendem tão barato assim?
Como de hábito, seu Frias tinha razão: usei a caneta por algum tempo, com muito prazer (tenho coleção de canetas-tinteiro), até que foi roubada. E ninguém se sentiu comprado com a gentileza – tanto que hoje nem consigo lembrar quem foi que a enviou.
Observatório
é culturaPor que os servidores federais encarregados de usar os cartões corporativos são chamados de ‘ecônomos’? A palavra mais comum em português é ‘mordomo’. Bom, talvez o pessoal tenha ficado com medo da palavra ‘mordomia’.
E se fosse médico?
‘Negado pedido de liberdade a economista acusado de assassinar a mãe.’ Na verdade, o cavalheiro citado não é mais ‘acusado’: já foi condenado, está incluído no rol dos culpados. E sua profissão não tem nada a ver com o crime: ele o teria cometido se fosse médico, engenheiro, advogado, jornalista, gari.
O pior é que esta mania pega: cada vez mais os meios de comunicação tratam a pessoa pelo que produz, e não pelo que é.
Palavras…
Há certas palavras que só existem durante o carnaval: genitália, por exemplo. Aliás, a palavra entra geralmente na expressão ‘genitália desnuda’. Desnuda também só se usa no carnaval: fora do carnaval, as pessoas estão nuas ou peladas.
… palavras
A moda surgiu não se sabe de onde. O Santos contratou dois jogadores sul-americanos, um equatoriano e um colombiano, e a imprensa passou a chamá-los de ‘latinos’ (‘Santos contrata dois latinos’, ‘Leão chia contra opção latina’).
Latino pode ser sul-americano, pode ser português, espanhol, italiano, cubano, mexicano. E nós, brasileiros, que é que somos, cara-pálida?
E eu com isso?
Confesse, caro colega: sem as últimas notícias de moda não dá nem para dormir. Vejamos:
1.
‘Modelo segura decote e impede que seio apareça’2.
‘Modelo Karen Elson vai ao chão em Nova York’3.
‘Moda não é só roupa’4.
‘EUA: enterros ecologicamente corretos viram moda’O enterro ecologicamente correto não admite corpo embalsamado (muito mais comum nos EUA do que aqui), nem caixão. Mas há também a possibilidade de enterro com caixão de papelão prensado reciclável. Viva o verde!
Os grandes títulos
Carnaval é plantão, é gente louca para viajar, e isso gera títulos magníficos.
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‘Fim do Carnaval vai reforçar a Lusa’Este colunista gosta de futebol. Mas nem sabe em que posição joga este novo reforço da Portuguesa de Desportos.
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‘Britney estaria se tratando de transtorno bipolar no hospital’Ela estaria se tratando, não se sabe muito bem. Teria sido internada, talvez. Os pais de Britney teriam brigado com o assessor Sam Lufti. Britney teria tentado se suicidar e teria reclamado de que não conseguia dormir há vários dias.
Em resumo, ninguém sabe de nada. E publicou assim mesmo.
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‘Marcelo pede para o Corinthians: deixem eu jogar no domingo’É quase tão bom quanto o ‘arruma dois pau pra eu’, não é mesmo?
E há os dois títulos que, com certeza, quem escreveu não leu depois. Ou não os colocaria assim, a seco, num noticiário de família. O melhor é o último?
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‘Fizeram de mim um torcedor que troca de anal na hora dos jogos’**
‘Agente garante que Leão conhece Pinto e o quis no Corinthians’Deve ser mentira, sem dúvida. Pinto é um dos tais ‘latinos’, e Leão já disse várias vezes que só gosta de jogadores brasileiros – também latinos, claro, mas da turma que fala português.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados