Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Um contra-senso ululante

Na sua edição de domingo (5/7), o Jornal do Commercio do Recife, à página 22, dedicada ao episódio do golpe de Estado em Honduras, publicou matéria (‘Uma reação ao modelo chavista’) na qual transcreve declarações do professor José Flávio Saraiva, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Segundo este, o presidente constitucional de Honduras, Manoel Zelaya Rosales, teria tentado ‘realizar uma consulta popular sobre a possibilidade de reeleição’, seguindo o que seria o figurino chavista, e por isso teria sofrido um impeachment. ‘Os partidos se alternavam no poder. Zelaya rompeu esse acordo e derrubaram ele’, diz o nosso luminar brasiliense. Simples, não?

Em tempos de internet, com o Google, sites de jornais e revistas, bibliotecas virtuais e canais web de TV de todo o mundo à disposição, é inacreditável que alguém com a titulação do sr. Saraiva ouse expressar pelas páginas de um jornal tradicional tamanhos disparates. E que um jornal de importância os acolha desatentamente. Conforme os bem informados sabem, o presidente Zelaya queria realizar no domingo, 28 de junho, uma encuesta (equivalente ao francês enquête), ou seja, uma consulta de opinião sobre se o povo hondurenho concordava em nas próximas eleições (a se realizarem em novembro) ser adicionada uma quarta urna ao escrutínio (as outras três urnas se destinariam às votações para presidente da República, deputados e prefeitos) para que os eleitores expressassem, então, se estavam a favor ou contra a elaboração de uma nova Constituição que viesse a substituir a vigente, datada de 1982. Só isto!

Argumento sem sentido

Nenhum processo que vinculasse resultado a remendo constitucional. Se a consulta resultasse na aprovação da idéia da nova urna, aí, sim, é que se faria um referendo sobre uma nova carta magna, cabendo ao povo decidir soberanamente sobre o assunto. E se o referendo resultasse na aprovação da idéia da elaboração de uma nova carta, em seqüência os órgãos do poder estatal providenciariam a implantação de medidas que viabilizassem a concretização da vontade popular. Nada fora dos limites legais, como querem fazer crer os golpistas. Ou um presidente de uma República democrática não pode escutar o seu povo?

Obviamente, a consulta promovida pelo governo legitimamente eleito significava uma medida de ‘pressão’ sobre as forças da estagnação, no sentido de enfraquecer-lhes a resistência à necessária, do ponto de vista popular, ampliação dos mecanismos participativos na vida política e social hondurenha, de maneira a romper o círculo de ferro do autoritário domínio oligárquico vigente naquele país. Isto foi o que importou, realmente. E a isto as oligarquias nacionais reagiram com rudeza e virulência. Até porque elas já estavam afastadas do presidente, que vinha descolando o país da órbita imperial norte-americana e aproximando-o dos governos progressistas da América Latina, inclusive incorporando-o à Aliança Bolivariana das Américas (Alba). Faltava só uma justificativa para o golpe.

Se a Constituição em vigor interdita a reeleição do presidente em exercício e se a eleição do novo presidente da República e a consulta pela quarta urna seriam feitas no mesmo dia, como Zelaya poderia estar tentando a reeleição, ou seja, a renovação imediata do seu mandato? Levantar este tipo de argumento equivale a intitular de círculo um quadrado, um contra-senso ululante! Mas o sr. Saraiva, escudado na sua titulação e no seu cargo, parece disposto a isto.

Exigida recondução de Zelaya

Quem ler os sites dos principais jornais hondurenhos (ver, por exemplo, La Tribuna e El Heraldo), poderá constatar que esta história de Zelaya tentar a reeleição é meramente um argumento utilizado por seus opositores para justificar o golpe de Estado. Mesmo assim, sem muita insistência, pois sabem-no sem substância. Não tem cabimento lógico no real e, na verdade, repercute um bordão cunhado nos últimos tempos na central de propaganda das forças políticas conservadoras e reacionárias em nosso continente que consiste em sistematicamente acusar os governos progressistas de buscarem a perpetuação no poder. Bordão que, aliás, já foi utilizado em outros episódios golpistas em outros países, como no caso dos recentes conflitos sociais na Bolívia. Na falta de argumentos consideráveis, apela-se para a mistificação. Inacreditável é que alguns órgãos de comunicação e certos jornalistas políticos – até mesmo âncoras do noticiário televisivo – no restante da América Latina o avalizem ou, no mínimo, atribuam-lhe algum valor.

Mas quando se trata de um acadêmico, só dá para supor má-fé fundada numa distorção ideológica de direita, sempre avessa à verdade dos fatos, o que é corroborado pela concordância entusiasmada do mestre com o golpe, ao qual atribui o suave epíteto de impeachment. Veja-se, por exemplo, o pronunciamento sobre o assunto do deputado Jair Bolsonaro, porta-voz da extrema-direita brasileira, na Câmara dos Deputados no dia 07 de julho. Coincide com as idéias contidas nas declarações do sr. Saraiva ao JC. Resta perguntar ao ilustrado professor se na democracia liberal há três poderes independentes, em patamares de importância equivalentes, ou se um ou dois deles pode depor e nomear o presidente do terceiro poder, substituindo-se ao povo. Em quem repousa a soberania política numa democracia?

Em seu discurso na Assembléia Geral da ONU, transmitido on line, real time, por alguns canais web de TV, Zelaya esclareceu os fatos ocorridos em seu país com equilíbrio, serenidade e didatismo. Naquele foro, foi aprovado por unanimidade o repúdio ao golpe que o destituiu e exigida sua recondução ao cargo. A Assembléia da OEA fez o mesmo. A grande mídia e diversos sites e blogs alternativos de comunicação, sobretudo o América Latina em Movimento, em todo o mundo publicaram montanhas de matérias informativas e analíticas sobre o golpe de Estado hondurenho. Pena que o professor Saraiva de tudo isto tenha aproveitado quase nada. Prefere o papel de propagandista da reação golpista hondurenha.

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Sociólogo, secretário executivo do Observatório Social do Nordeste (Observanordeste) da Fundaj