Numa passagem do primoroso perfil produzido pelo repórter Christian Carvalho Cruz para o caderno “Aliás”, do Estado de S.Paulo de domingo, 23, o perfilado – o ex-marinheiro Antonio Geraldo Costa, o Neguinho, último dos refugiados da ditadura militar a voltar do exterior – comenta que Lula “se meteu numa camisa de força para poder governar”.
Num fim de semana em que a cobertura política se concentrou nos efeitos, para o PT, das ações de Lula em favor do presidente do Senado José Sarney – tendo como gancho o episódio da reversão da renúncia irreversível do líder de bancada Aloizio Mercadante –, o antigo exilado disse mais, com menos palavras, do que a maioria dos comentaristas da imprensa.
É que, na sua própria camisa de força, que os prende ao ciclo cotidiano da notícia e tolhe as iniciativas de ir além do que já está à vista de todos, os jornais ainda não pararam para pensar na questão de fundo da aliança lulista com o PMDB de políticos do calibre ético de um Sarney, de um Renan, de um Jucá, de um Geddel…
A questão, no limite, é esta: podia ser diferente?
No sistema político brasileiro, os presidentes da República têm de chegar a algum tipo de acomodação com quem dá as cartas nos partidos que formam as maiorias parlamentares. Até aí, nada de novo. Se não fosse assim não se falaria em “presidencialismo de coalizão”.
A camisa de força é portanto um fato da vida no poder. Atribui-se a Lula a seguinte frase sobre o seu abraço a Sarney: “Ruim com ele, pior sem ele.” Mas será tão simples?
O problema não é a camisa que imobiliza, mas o grau do aperto, a margem de manobra do governante ético – dentro do que as servidões do pragmatismo permitem – para dizer “o meu limite é este, daqui não passo” nos compromissos, ou melhor, na cumplicidade com os aliados. E, ainda assim, sem pôr a pique a tal da governabilidade.
Como é que essa margem de manobra se estabelece na prática em cada caso? Como é que os presidentes procuram administrar o presumível ganho político da complacência com o desgaste político dessa mesma complacência? Quais são as condições políticas que tendem a levá-los mais a uma direção do que a outra? Oito anos de Fernando Henrique e mais quase sete de Lula dão material de sobra para começar a discussão jornalística – não acadêmica – que a imprensa talvez nem se dê conta de que deve ao leitor.
Tanto pior. Sem ela, tudo continuará reduzido, nas páginas políticas, ao torneio de arremesso de lama entre governo e oposição.
A ´utopia` da internet
Ponto para o caderno “Mais!” da Folha do último domingo pela iniciativa de entrevistar o filósofo espanhol radicado na Colômbia Jesús Martín-Barbero (ver aqui). Nas respostas ao jornalista Renato Essenfelder, ele põe na mesa benvindas provocações sobre internet, democracia e tendências dos meios de comunicação.
Na contracorrente do que se lê sobre o admirável mundo novo das comunidades virtuais de relacionamento, ele sustenta que essa ideia faz acreditar numa falsidade – a de que “já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais”.
“Nunca fomos nem somos nem seremos iguais”, contesta. “Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.”
Martin-Barbero faz uma distinção entre as oportunidades proporcionadas pela rede e os valores que lhe são atribuídos – para ele, uma utopia. Embora reconheça que “há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade”, rejeita a noção de que o site constitua uma sociedade – e uma sociedade libertária. “O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, nada mais.”
Nem por isso o filósofo parece ter muitas dúvidas sobre o poder da internet de mudar a percepção das pessoas sobre o mundo. Mais ainda, de “organizar a vida cotidiana”.
Perguntado sobre a segmentação dos interesses facilitada pelo circuito da informação na rede – na imprensa escrita, o leitor de alguma forma acaba tomando conhecimento de uma ampla variedade de fatos, ao passo que nos novos meios o leitor tenderia a se fixar nos assuntos que já o atraíam em primeiro lugar – Martin-Barbero traz uma ideia que o blogueiro não se recorda de ter visto antes.
É quando explica por que considera importante que, antes, “todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo”. Isso “de certa forma obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres” – o que, por sua vez, representaria um fator de coesão social.
No fim ele deixa uma advertência. “Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante”, argumenta, para se perguntar o que fará o sistema educacional “para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado”.
Uma pergunta para Marina Silva
A observação da imprensa às vezes parece engenharia de obra feita. Por exemplo, quando, diante de uma entrevista publicada, o observador reclama de que uma pergunta ficou faltando – o que daria ao entrevistador que o ler o direito de comentar que “assim, fica fácil”.
Feita a ressalva, é exatamente o que se tem a reparar da entrevista com a senadora Marina Silva que a Folha publicou domingo. Vai logo de saída a uma controvérsia que envolve as crenças da provável candidata presidencial pelo Partido Verde – a sua defesa do creacionismo, que pretende dar uma aparência científica à ideia de que o universo e a vida são criações divinas.
Para Marina, “houve um completo mal-entendido”. Conta que, ao dar uma palestra numa universidade adventista, foi perguntada o que achava de as escolas confessionais, como aquela, ensinarem o criacionismo. Respondeu não ver problema, “desde que ensine também a teoria da evolução [de Darwin]”.
No mais, ela nem defende o criacionismo, nem se considera criacionista. “Apenas acredito em Deus, é uma questão de fé”, explicou.
Ao que a entrevistadora emendou de primeira: “E essa fé a impede de discutir questões como a descriminalização do aborto?”
Marina saiu pela tangente. Disse que as convicções de cada um devem ser respeitadas, que não se envergonha de dizer cristã – tal seria – e que “jamais tergiversaria sobre minha fé para ganhar simpatia de quem quer que seja”.
O problema, evidentemente, não é este – e sim o de saber como, num hipotético governo Marina Silva, ela conciliaria as conhecidas convicções religiosas da pessoa com as decisões da presidente. Por exemplo, ela vetaria uma lei aprovada no Congresso descriminalizando o aborto?
Não custava perguntar.
P.S. [Acrescentado às 9:10 de 25/8]
A Folha de S.Paulo de hoje, em nota sob o título “Marina discute temas polêmicos com o PV”, informa que a senadora tratou com a direção do partido como abordar a descriminalização do aborto, defendida pelos verdes. “Ficou acertado que Marina, contrária à proposta, dirá que não interferirá em debates do tema no Congresso.”