Na sua coluna deste domingo no Globo, Míriam Leitão acusa os órgãos de comunicação de fazer uma cobertura enviesada do debate sobre a adoção das chamadas cotas raciais para ingresso nas universidades federais brasileiras.
‘Melhor faria o jornalismo se deixasse fluir a discussão, sem tanta ansiedade para, em cada reportagem, firmar a posição que já está explícita nos editoriais’, escreve ela no artigo ‘Ora, direis!’ [íntegra abaixo]. ‘A mensagem implícita em certas coberturas só engana os que não têm olhos treinados.’
Com um mínimo de treino, o olho do leitor decerto enxergará que, ao falar em ‘os órgãos de comunicação’, Míriam mira o próprio Globo. Pelo menos em nenhum outro dos grandes jornais se vê o mesmo nível de ‘ansiedade’ em infundir em cada matéria sobre o polêmico assunto a posição – em geral contra as cotas – exposta nos respectivos editoriais.
Na Folha e no Estado, os principais concorrentes do Globo, a discussão a respeito, embora longe do ideal, flui mais do que no jornal carioca. Neste, como até os cegos sabem, o combate às cotas é uma bandeira, uma causa.
Essa, em si, é uma decisão editorial evidentemente legítima, qualquer que seja a questão em jogo. O que é imperativo cobrar, como faz corajosamente a colunista, é a não contaminação da cobertura pela ‘posição da casa’ – um dos pecados capitais do jornalismo.
Isso é ainda mais prejudicial para o leitor quando o tema, vá lá o jogo de palavras, contém uma infinidade de matizes cinzentos entre o branco e o preto, como é o caso das políticas de ação afirmativa. Quanto mais fluente o debate, mais chances terá o público de tomar conhecimento dessas tonalidades, percebendo a partir daí que as respostas ao dilema das cotas não são meros ‘sim’ ou ‘não’, porém, ‘sim, mas’, ou ‘não, mas’.
O artigo de Míriam Leitão:
‘A luta contra a escravidão foi um movimento cívico de envergadura. Misturou povo e intelectuais, negros e brancos, republicanos e monarquistas. Foi uma resistência que durou anos. Houve passeatas de estudantes e lutas nos quilombos. Houve batalhas parlamentares memoráveis e disputas judiciais inesperadas. Os contra a abolição reagiram nos clubes da lavoura, na chantagem econômica e nos sofismas.
O país se dividiu e lutou. Venceu a melhor tese. Pena o país ter feito o reducionismo que fixou na memória coletiva apenas o instante da assinatura da lei pela Princesa. Tudo foi varrido. Do povo em frente ao Paço à persistência para se aprovar a lei que tornou extinta a escravidão no Brasil.
Foram seis anos de lutas parlamentares para libertar os não-nascidos, após quedas de gabinetes, avanços e retrocessos. Mais luta de vários anos para libertar os idosos. Por fim, a maior das batalhas: a libertação de todos.
Lutou-se com a poesia e o jornalismo. Com a política e o Direito. Lutou-se na Justiça com as Ações de Liberdade, incríveis processos que escravos moviam contra seus donos. Os negros lutaram de forma variada: com a greve negra em Salvador, com rebeliões e quilombos. Os escravocratas adiaram o inevitável, ameaçaram com a derrota econômica, assombraram com todos os fantasmas nacionais. Pareciam vencer, até que perderam.
Fica em quem revisita a história a constatação de um erro: os abolicionistas se dispersaram cedo demais. Era a hora de reduzir a imensa distância que a centenária ordem escravagista havia criado no país. Venceu a idéia de que, deixado ao seu ritmo, o país faria naturalmente a transição da escravidão negra para um outro país, sem divisões raciais. Idéia poderosa esta da inércia salvacionista. Ela construiu o imaginário de um país sem racismo por natureza, que teria eliminado o preconceito naturalmente, como se as marcas deixadas por 350 anos de escravidão fossem varridas por um ato, uma lei de duas linhas. Ainda há quem negue, hoje, que haja algo estranho numa sociedade de tantas diferenças.
O manifesto contra as cotas tem alguns intelectuais respeitáveis. Mais os respeitaria se estivessem pedindo avaliações e estudos sobre o desempenho de política tão recente; primeira e única tentativa em 120 anos de fazer algo mais vigoroso que deixar tudo como está para ver como é que fica. O status quo nos trouxe até aqui: a uma sociedade de desigualdades raciais tão vergonhosas de ruborizar qualquer um que não tenha se deixado anestesiar pela cena e pelas estatísticas brasileiras.
Ora, direis: o que tem o glorioso abolicionismo com uma política tópica — para tantos, equivocada — de se reservar vagas a pretos e pardos nas universidades públicas?
Ora, a cota não é a questão. Ela é apenas o momento revelador, em que reaparece com força o maior dos erros nacionais: negar o problema para fugir dele. Os “negacionistas” — expressão da professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP — sustentam que o país não é racista, mas que se tornará caso alguns estudantes pretos e pardos tenham desobstruído seu ingresso na universidade.
Erros surgiram na aplicação das cotas. Os gêmeos de Brasília, por exemplo. Episódios isolados foram tratados como o todo. Tiveram mais destaque do que a análise dos resultados da política. Os cotistas subver teram mesmo o princípio do mérito acadêmico? Reduziram a qualidade do ensino universitário? Produziram o ódio racial? Não vi até agora nenhum estudo robusto que comprovasse a tese manifesta de que uma única política pública, uma breve experiência, pudesse produzir tão devastadoras conseqüências. Os órgãos de comunicação têm feito uma enviesada cobertura do debate. Melhor faria o jornalismo se deixasse fluir a discussão, sem tanta ansiedade para, em cada reportagem, firmar a posição que já está explícita nos editoriais. A mensagem implícita em certas coberturas só engana os que não têm olhos treinados.
Ora, direis, que vantagens podem ter políticas que atuam apenas no topo da escala educacional? Ter mais pretos e pardos junto aos brancos, nas universidades públicas, permite a saudável convivência no mesmo nível social. Na minha UnB, não havia negros; na atual, há mais de dois mil. Isso é um começo num país com o histórico do Brasil.
Melhorar a educação pública sempre será fundamental para construir o país futuro, mas isso não conflita com outras políticas desenhadas diretamente para derrubar as barreiras artificiais e dissimuladas que impedem a ascensão de pretos e pardos. O vestibular não mede a real capacidade do aluno de estar numa universidade, mas, sim, quem aprendeu melhor os truques dos cursinhos. Há muito a fazer pelo muito não feito neste longo tempo em que se esperou que, deixando tudo como está, tudo se resolveria. Ajudaria se intelectuais, ou não, quisessem avaliar as políticas de ação afirmativa, em vez de ter medo delas.
O racismo brasileiro é ardiloso e dissimulado. A luta contra ele será longa e difícil. Será mais eficiente se unir brancos e negros. Será mais rápida se o país não acreditar nas falsas ameaças de que tocar no assunto nos trará o inferno da divisão por raças. Ora, a divisão já existe; sempre existiu. O que precisa ser construído são os caminhos do reencontro.’