Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A credibilidade de um ultraje

A revista Newsweek, a segunda maior do mundo, se desculpou na edição hoje nas bancas pela informação, divulgada na edição anterior, de que militares americanos profanaram o Corão para desmoralizar presos muçulmanos na base de Guantánamo. A notícia provocou no mundo islâmico protestos violentos como não se via há mais de três anos. No Afeganistão, os distúrbios provocaram pelo menos 17 mortes.

Mas a revista, a rigor, não desmentiu com todas as letras a informação, recebida de “uma fonte bem-informada do governo dos Estados Unidos” que a teria lido em um documento. A mesma fonte, esclarece agora a Newsweek, já não está segura se e onde leu a história — cujo ponto mais ofensivo fala de um exemplar do Corão sendo jogado numa latrina.

“Lamentamos ter errado em alguma parte de nossa matéria”, escreveu o editor Mark Whitaker, medindo as palavras, “e manifestamos nossa solidariedade às vítimas da violência e aos soldados americanos apanhados por ela”.

Numa entrevista ao New York Times, Whitaker disse depois: “Não estamos nos retratando de nada. Não conhecemos os fatos definitivamente.”

[No dia seguinte, porém, sob o que o NYT chamou ‘rufar de críticas’ do governo Bush, a revista mudou de posição. Numa nota, a Newsweek passou a dizer que ‘com base no que sabemos agora, estamos nos retratando por nossa primeira matéria, segundo a qual uma investigação militar interna revelou abusos do Corão na Baía (sic) de Guantánamo’.]

Na Newsweek, ele havia esclarecido que, “antes de decidir se publicaríamos a informação, pedimos a dois funcionários do Departamento de Defesa, separadamente, que a comentassem. Um se recusou a nos dar uma resposta; o outro contestou um aspecto diferente da matéria, mas não colocou em dúvida a denúncia sobre o Corão”.

O episódio reavivou entre os críticos americanos da mídia as cobranças sobre o uso de fontes anônimas (ver neste blog a nota “Se o off é inevitável, não relaxe”), sem falar nas acusações dos porta-vozes do governo à “irresponsabilidade” da revista.

A Newsweek insiste que a fonte que estava impedida de identificar já tinha se mostrado confiável no passado e tinha condições de acesso ao documento a que se referiu.

A direção da revista concluiu que valia a pena dar uma nota sobre o assunto na seção Periscópio porque pela primeira vez a fonte era americana. Outros órgãos de imprensa precederam a Newsweek em revelações do gênero, mas sempre baseadas em depoimentos de presos libertados de Guantánamo.

Mas, com toda probabilidade, o que fez a revista dar a nota foi outra coisa que não parece ter ocorrido aos críticos: a sua plausibilidade.

Depois das evidências dos maus-tratos a que são submetidos os mais de 500 presos de Guantánamo; das abjetas sevícias e humilhações sexuais documentadas no presídio de Abu Ghraib, em Bagdá; e das denúncias, igualmente sólidas, de que os americanos terceirizaram a tortura — entregando suspeitos de terrorismo aos serviços de segurança de países, como Egito, Jordânia, Paquistão, Turquia e mesmo a Síria, cujos regimes políticos não estimulam propriamente o respeito aos direitos humanos, muito menos a punição a torturadores — nenhum jornalista americano isento ficará estarrecido se uma fonte credenciada lhe confidenciar que interrogadores de Guantánamo jogaram o sacrossanto livro dos muçulmanos na privada e puxaram a descarga.

Em suma, não apenas a fonte era crível, mas principalmente o ultraje relatado era crível. A direita americana repete sem cessar nos seus blogs o mantra da crescente perda de credibilidade da mídia tradicional do país. Mas esse descrédito não se compara ao do governo Bush perante os jornalistas que não estão a seu serviço ou temem ser estigmatizados como “liberais”.

Em outros tempos, a Newsweek iria mais longe do que foi na checagem do que lhe disse a fonte de confiança e, mesmo se a averiguação desse positivo (ou não desmentisse frontalmente a informação vazada), o editor pensaria duas vezes antes de autorizar a publicação da notícia.

É o governo Bush — não a imprensa honesta — que precisa provar toda hora a sua inocência. E não tem conseguido.