Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A crise na USP a descoberto

Dá vontade de ocupar as redações da Folha e do Estado em protesto contra a lastimável cobertura da crise aberta nas universidades públicas paulistas, em especial na USP, pelo decreto do governador José Serra de 1º de janeiro, que ‘organiza a secretaria de Ensino Superior e dá providências correlatas’.

Noticia-se o ostensivo – a ocupação da reitoria da USP, a decisão judicial de reintegração de posse do imóvel, as fracassadas negociações entre a reitora Suely Vilela e os ocupantes, os preparativos da PM para a eventual retomada das instalações invadidas.

Às vezes, ainda no departamento do visível e tangível, aparecem matérias de qualidade, como a da repórter Laura Capriglione, na Folha de hoje, sobre a vida na reitoria ocupada e os protagonistas do fato.

O título e o sub são um irresistível convite à leitura. ’25 anos depois, estudante leva a mãe para a invasão’ e ‘Novo movimento estudantil é bem diferente daquele da invasão da reitoria da USP em 82’.

O texto contém uma preciosidade sobre a invasão propriamente dita. Principais trechos:

‘Esse novo movimento estudantil apareceu há 20 dias, quando 120 alunos dirigiram-se à reitoria para entregar um documento com reivindicações. Como não encontraram a reitora, que estava viajando, resolveram invadir o local – assim, meio na louca. E a coisa começou a crescer, sem controle e sem interlocutores.’

Muito bem, palmas. Mas algum jornalista foi checar se é verdade que o governador Serra teria dito aos reitores da USP, Unesp e Unicamp que assinou ‘sem ler’ o decreto da discórdia?

Algum jornalista foi checar se é verdade que, numa reunião com os diretores das faculdades da USP, a reitora levou um sabão por sua atitude tida como complacente diante da situação que ali se criou?

Algum jornalista teve a pachorra de esmiuçar o decreto serrista, chamado nos bastidores de ‘Frankenstein’, para contar ao desinformado leitor quais são as tais ‘providências correlatas’ nele embutidas?

Algum jornalista foi apurar no governo se é verdadeiro o rumor de que a saída do titular da desastrada secretaria de Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti, é uma questão de tempo? Ou se é verdadeiro que a própria secretaria poderá ser extinta, depois de um período necessário para o governador salvar a face?

Algum jornalista se dignou ouvir quem de direito para explicar por que se achava que o decreto – atenção, decreto, no singular, e não ‘decretos’, como se ouve e lê por aí – feria a autonomia universitária e por que os três reitores concluíram que ela está ilesa?

Algum jornalista tentou tomar o pulso do professorado uspiano para ‘sentir o clima’ e dar ao público pagante uma visão mais matizada do que se pensa na instituição?

Paro por aqui para abrir espaço a um texto que me parece o mais judicioso sobre a encrenca no câmpus. É longo, academicoso, mas pega no nervo da crise. O seu autor é o professor de sociologia Sérgio Adorno. Chama-se ‘A USP e a desobediência civil’. Lá vai:

‘Venho, como cada um de nós, acompanhando com enorme apreensão os rumos dos acontecimentos desde a ocupação do prédio da Reitoria da USP. Não quero entrar na discussão a respeito do mérito das reivindicações estudantis. Como todos nós, persisto acreditando na autonomia universitária, antes de tudo da pesquisa e do ensino, com apoio na autonomia administrativa e orçamentária.

Igualmente, reconheço princípios de justiça em movimentos que cuidam defender a pertinência do ensino público assim como lutam pela melhoria das condições que permitam a realização das atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão) e das atividades-meio (gestão administrativa) com vistas à formação de profissionais e pesquisadores capazes de responder aos desafios postos por uma sociedade cada vez mais sequiosa por justiça social.

O que me parece estar em discussão não são os fins do movimento, mas seus meios. Pessoalmente, como pesquisador que venho há anos estudando violência e a violação de direitos humanos, não posso, sob qualquer hipótese, deixar de reconhecer que o ato de ocupação fez apelo à violência. Mesmo que a atitude das autoridades universitárias tenha sido arbitrária e violenta em não atender prontamente os alunos – não as estou julgado, até porque não disponho de informações suficientes para fazê-lo –, um ato violento não justifica outro. Por que entendo que a ocupação valeu-se de meios violentos?

Porque impõe, pelo uso ou ameaça arbitrários do uso da força, barreiras ao livre acesso daqueles(as) aos quais a comunidade universitária, pelo sim ou pelo não, confiou o governo de nossas atividades. Impedi-los de assumir seus postos, é impedi-los não apenas de responder por seus atos, inclusive o de zelar pelo cumprimento das leis e regulamentos que nos regem, como também o de poder negociar conflitos.

Nunca é demais lembrar, o uso arbitrário da violência impõe o silêncio, o mais insidioso dos arbítrios porque impossibilita o outro de expressar-se, vale dizer de pensar criticamente e agir com sabedoria política.

Não é de se esperar que, em um espaço social e institucional onde viceja, por excelência, a ciência – como é a universidade – a violência seja recurso de pressão e imposição da vontade de uns contra a vontade de outros, contra o recurso à persuasão e ao convencimento pela palavra, atributos da razão.

No decorrer dos acontecimentos, sei que foram feitos esforços para uma saída do impasse. Até onde tenho acompanhado, as autoridades universitárias estão tendentes a negociar e a atender parte das reivindicações, desde que o prédio seja desocupado.

Por sua vez, os alunos – cuja representatividade política não me parece claramente definida haja visto o documento apócrifo publicizando as reivindicações logo no início do movimento (afinal, o DCE assumiu a liderança do movimento?) –, não parecem dispostos a aceitar a exigência da Reitoria, pretendendo inclusive explicitação de sua posição face aos decretos governamentais, o que parece ter sido atendido com o documento subscrito pelos três reitores das universidades estaduais, divulgado pela mídia impressa e eletrônica no final da semana passada e inserido no site da USP.

Diante do prosseguimento do impasse, à Reitoria pareceu não restar outra solução que não fosse recorrer à justiça para recuperar a posse do prédio. Se não o fizesse, poderia ser judicialmente interpelada, inclusive pelo Ministério Público, por improbidade administrativa.

Decisão judicial determinou a reintegração. Cabe, portanto, o cumprimento da decisão, como se espera no estado democrático de direito.

Não sejamos ingênuos, porém: a execução da decisão judicial implica recurso ao poder coercitivo, cuja atribuição é da competência legal da Polícia Militar. Sabemos que, se houver resistência dos alunos – e tudo indica que possa haver – as conseqüências poderão ser imprevisíveis, sobretudo para a integridade física de quem quer que seja e, no mínimo, para a preservação do patrimônio público e tudo o mais que esteja sob a guarda e tutela das autoridades universitárias, como documentos e registros oficiais.

Não sem razão, a comunidade uspiana guarda em sua memória as intervenções violentas da polícia (civil e militar) durante a ditadura. Tem motivos para desconfiar do apelo ao poder coercitivo mediante o uso – ainda que legítimo porque regulamentado no estado democrático de direito – da violência, mesmo que seja para o cumprimento de decisão judicial. Essa a razão pela qual foi produzida a moção, por iniciativa de docentes da FFLCH, que refuta “qualquer ação violenta de desocupação do prédio”.

Refleti sobre o documento e decidi não subscrevê-lo, porque creio que ele é insatisfatório. Ele silencia sobre questão fundamental. Ao silenciar, hesita sobre o papel das leis e do direito em sociedades democráticas.

De fato, também guardo profundas desconfianças quanto ao recurso à polícia militar. Igualmente receio que seu emprego possa produzir resultados indesejados, mormente porque – os estudos que venho desenvolvendo assim o indicam – não estou convencido de que a polícia militar possa exercer seu papel – neste caso, o de cumprir decisão judicial – sem apelo ao uso abusivo da força física.

E, se compararmos a experiência internacional, por mais preparadas que as forças policiais sejam não é raro que intervenções em movimentos de protesto coletivo resultem em feridos, quando não em mortos. Inclino-me também à solução negociada.

O que a moção não diz é como a decisão judicial vai ser cumprida sem o recurso ao poder coercitivo, enquanto a resistência à desocupação se mantiver.
Esse silêncio pode ser interpretado de vários modos.

Chamo a atenção para apenas três: primeiramente, a moção não aceita a decisão judicial. Bem, em tese, isso é legítimo. Se é assim, por que não propôs, como seria esperado no estado democrático de direito, o recurso à instância judicial superior para barrar os efeitos da decisão? Assim, seria suspenso o cumprimento da decisão e as negociações correriam por conta do livre jogo político.

Poder-se-ia argumentar que a intermediação judicial é morosa. Todavia, não tem sido assim em casos de extrema urgência política, que envolvem decisões que não podem ser postergadas, tanto assim que o pedido de reintegração de posse mereceu resposta imediata. Eu confesso que me sentiria mais confortável se poucas palavras tivessem sido ditas a respeito.

Alternativamente, a moção reconhece a decisão judicial e indica por que meios o poder coercitivo vai ser exercido já que negociação e entendimento, por sua própria natureza, estão excluídos dessa modalidade de poder. Certamente, é preciso certa dose de imaginação política para anunciá-los, mas nunca é demais tentar essa sorte de “poder coercitivo alternativo”.

Mais preocupante, no entanto, é que o silêncio – seja quais forem suas razões – pode sugerir que a moção não reconhece legitimidade à intermediação judicial. Neste caso, pode-se estar sugerindo que a Reitoria não deveria ter ido bater à porta do poder judiciário. Mas, se ela não fosse, estaria deixando de cumprir leis que reclamam deveres e responsabilidades no trato da coisa pública.

Em outras palavras, poder-se-ia estar dizendo que a negociação, em uma sociedade democrática, prescinde de leis, de pactos, da resolução de conflitos pelas vias institucionalmente reconhecidas como imperativas porque legítimas já que legitimadas pelo processo político que as assim constituiu.

Se eu, em um exercício algo arbitrário de aproximação, transpuser esse raciocínio para o domínio da violência urbana – com todo o cenário que os(as) colegas bem conhecem e acompanham, se não através de estudos que alcançam os mais variados objetos ao menos através do noticiário cotidiano – serei levado a descrer nas leis, nas agências encarregadas de controle da ordem pública e deslegitimar a justiça criminal como o lugar onde – a despeito de todas as críticas que vimos acumulando nas duas últimas décadas – é possível enfrentar os problemas e lutar por resolvê-los, ou seja encontrar saídas no interior da ordem constituída e não en dehors.

Caso contrário, paradoxalmente, eu serei levado a atribuir a uma certa ordem natural – o jogo de forças que inclusive apelo para as armamentos cada vez mais poderosos, a “guerra de todos contra todos” etc. – o lugar onde o consenso pode ser conquistado (já que estamos em guerra).

Não há solução para o problema da violência e do crime urbano que não passe pela polícia e pela justiça criminal; não há solução, neste domínio, que possa prescindir do uso da força e do poder coercitivo legitimamente constituído, emprego esse utilizado por quem legalmente investido para tanto e exercido de modo responsável, com respeito aos limites legais, com prestação de contas à sociedade civil e com a mais resoluta recusa às formas abusivas e excessivas de seu emprego.

Não é o poder coercitivo que é ilegítimo ou moralmente reprovável por sua própria natureza; o que o torna ilegítimo é ou a ilegitimidade de quem o emprega por não estar legalmente investido, ou a forma arbitrária ou violenta de que se reveste.

Em suma, entendo que há sim violência nos acontecimentos envolvendo a ocupação do prédio da Reitoria porque os atores não estão legalmente investidos do direito de recurso à violência para solução de conflitos nas relações sociais e institucionais.

Mais preocupante é constatar que o apelo à violência coloca a comunidade universitária no mesmo espaço jornalístico destinado à violência urbana cotidiana. Ao invés de comparecer ao caderno de cultura, destinado à produção da obra de arte e da ciência e tecnologia, passássemos agora a fazer figuração no noticiário policial.

Espero que este não seja o prenúncio final de um projeto grandioso que começou com uma elite política de vanguarda, visionária e capaz de pensar um projeto de universidade décadas à frente – como foi o projeto de criação da USP – e culmine tristemente numa grande repartição pública tocada por “especialistas sem espírito, gozadores sem coração” (Weber).

No impasse da USP, não há solução que não passe pela recusa à violência, parta de onde vier. Mas, igualmente, não há solução que passe pela suspensão das leis e das decisões judiciais. Não há meia-democracia, senão seremos levados a dizer que há meia-ditadura.

Espero que a multiplicação de atores, para além da universidade – classe política, OAB e Ministério Público – possa ajudar a desfazer o nó. Está nas mãos dos alunos demonstrarem maturidade política neste delicado momento. A desocupação do prédio é o melhor sinal na disposição para negociar.

Não se trata aqui de contabilizar vitórias e derrotas. Para os alunos, a mobilização da sociedade e sua encenação no espaço público, inclusive mediático, colocam em evidência suas reivindicações para além dos muros da USP. Pressionam pela discussão de temas candentes como o das relações entre o governo de estado e as universidades.

Contribuem, ainda que de modo torto, para a composição da agenda política. Para as autoridades universitárias, a dura lição das ruas – a da urgência política, a do diálogo permanente, constante e mediado com todas as lideranças da universidade, sem o que episódios e acontecimentos como este tenderão a se repetir com mais e maior freqüência.

Por fim, espero que:

1 – as negociações desta segunda-feira (21/05) cheguem a bom termo, o que inclui a desocupação do prédio;

2 – seja restabelecida a liderança legítima do movimento estudantil;

3 – seja constituída uma comissão de alunos, professores e funcionários para encaminhamento das demandas, mais propriamente relacionadas com as condições de trabalho, de ensino e de pesquisa;

4 – seja constituída uma comissão, igualmente tripartite, para estudar com maior densidade as iniciativas do governo estadual para que se possa compreender seu alcance e extensão, inclusive eventuais motivações latentes, não manifestas;

5 – que se possa, mais à frente, mobilizar, ao menos a comunidade da USP, para refletir sobre um projeto universitário para as próximas décadas.’

Em tempo: o decreto de Serra pode ser lido em http://info.fazenda.sp.gov.br/NXT/gateway.dll
/legislacao_financeira/financ_estadual/Decreto%2051.461.htm

P.S. Para aliviar o clima:

Os jornais de ontem noticiaram que se descobriu que o ultra-respeitado jornalista e escritor polonês Riszard Kapuscinski, recentemente falecido aos 75 anos, foi informante dos serviços secretos da ditadura em seu país entre 1967 e 1972. A informação apareceu primeiro na revista Newsweek. Sabem como o redator da Folha chamou a publicação? ‘Notícias da Semana’. Seria como se a Newsweek, ao citar a Folha de S.Paulo, desse ao jornal o nome ‘The sheet of S.Paulo’.

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