Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ´cultura do segredo` – e a do desinteresse

O repórter Felipe Recondo informa no Estado de hoje que a Casa Civil prepara um projeto para acabar com o sigilo eterno de documentos oficiais, como os da ditadura militar de 1964 e da diplomacia brasileira desde o tempo do Império.

A idéia é fixar um limite de 60 anos – 30 prorrogáveis por mais 30, a contar de sua origem – para a liberação da papelada, a pedido de interessados. O projeto não tem prazo para ir ao Congresso.

Já os documentos não considerados “referentes à segurança da sociedade e do Estado” poderão sair do armário graças a uma Lei de Acesso a Informações Públicas, cujo projeto será enviado nos próximos meses.

Com 20 anos de atraso, a lei definirá regras e prazos para o cumprimento da determinação constitucional de que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”.

Mas não convém prender a respiração. A “cultura do segredo”, de que fala o colombiano Enrique Santos, da Sociedade Interamericana de Imprensa, citado na matéria, é uma força poderosa em qualquer governo – e só pode ser neutralizada quando a sociedade pressiona vigorosamente pelo direito de saber.

A pressão será tanto mais levada a sério quanto mais os principais interessados contarem na ordem das coisas. Eles são basicamente dois tipos de gente: os historiadores do passado, os propriamente ditos; e os historiadores do presente – os jornalistas.

Pelo seu peso nos Estados Unidos, a academia mais os centros extra-universitários de estudos e pesquisas – os famosos think tanks -, e a imprensa impuseram aos poderes públicos, já lá se vão 42 anos, o Freedom of Information Act. Graças a essa lei, volta-e-meia os americanos ficam sabendo de malfeitos que os seus autores e sucessores gostariam de manter a sete chaves.

A queda de braço entre o segredo de Estado e a livre informação é um caso típico de confronto entre governo e sociedade. Ora, é evidente que mesmo os grupos mais vocais da sociedade brasileira não estão nem aí, ou quase isso, para a exumação do passado.

Quantos setores organizados querem saber, por exemplo, dos crimes de guerra cometidos pelo Exército brasileiro contra o Paraguai, entre 1864 e 1870? Ou de detalhes da política externa pendular de Getúio Vargas enquanto era incerto o desfecho da segunda guerra mundial?

Para os querem pôr uma pedra no assunto de uma vez por todas – os militares, o material mais sensível guardado no fundo dos cofres públicos é o que tem a ver com os anos de chumbo da ditadura.

A propósito, muito do que se sabe da história secreta dos preparativos para o golpe de 1964, envolvendo o governo americano, se deve a pesquisas, nos Estados Unidos, do jornalista Marcos Sá Correia (à época no Jornal do Brasil) em documentos liberados pelo Freedom de Information Act, em 1978.

“Exército, Marinha e Aeronáutica, de acordo com um ministro do governo”, escreve o repórter do Estado, “resistem à abertura de arquivos porque afirmam não dispor de documentos próprios da época da ditadura militar, que relatariam o seu lado da história.”

O que seria isso, aliás? Razões para torturar, como as que a América de Bush invoca na chamada luta contra o terrorismo?

Então é assim: sem uma comunidade acadêmica e uma imprensa dispostas a se bater pelo resgate do passado, a cultura do segredo dificilmente deixará de dar a última palavra nas decisões de Estado.

Foi o que aconteceu com a Lei 11.111, assinada pelo presidente Lula, dando à Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas o poder de manter até para toda a eternidade o sigilo dos papéis que devem ser bons demais – esclarecedores demais – para ser compartilhados com nós outros, cidadãos.

Na semana passada, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, pediu ao Supremo Tribunal Federal que julgue a constitucionalidade da 11.111.

A ver o que sai antes – e, principalmente, como: a decisão do Supremo ou o projeto do governo sobre os 60 anos de sigilo máximo.