O caderno Aliás do Estado de S. Paulo deste domingo, 4 de setembro, publica importante entrevista da professora da UnB Débora Diniz, especialista em bioética, sobre a história do garoto de Franca, interior de São Paulo, que sofre de doença degenerativa e cujo pai pede a eutanásia, enquanto a mãe é contra. A certa altura, Débora diz: “Quando entra o cenário do espetáculo, as pessoas não aprofundam o argumento e vão para o periférico, que é dizer que os pais querem matar, que não querem mais cuidar. Rapidamente se dirigem a esse pai como assassino, como sujeito perverso, e a essa mão como uma santa. Quem passa pela mesma situação fica com medo do espetáculo e de apresentar sua história, que permitiria um debate público civilizado”.
No livro Paisagens Imaginárias, publicado no Brasil em 1997, Beatriz Sarlo mostra como a esfera midiática rearranja as fronteiras entre o que é público e o que é privado. O texto chama-se A Democracia Midiática e seus Limites. Trata da disputa entre Gabriela Osswald e Eduardo Wilner pela posse da filha, Daniela. Eles se casaram na Argentina, foram morar no Canadá, onde nasceu a menina, e depois se separaram. A televisão argentina transformou o conflito num grande espetáculo. A professora Sarlo (da Univesidade de Buenos Aires) comenta:
“A esfera midiática introduziu inúmeras modificações na apresentação dos problemas que magnetizam a sociedade, mas o que fez com maior originalidade com o rearranjo de fronteiras entre o que é público e o que é privado. Como conseqüência disso, alterou-se a relação entre os fatos que afetam a todos os cidadãos e aqueles cuja projeção diz respeito apenas aos que estão privada e diretamente envolvidos em um conflito. Emerge uma solidariedade do privado em uma sociedade que está perdendo critérios públicos de solidariedade”.
E, adiante:
“Em sociedades onde os grandes problemas são cada vez mais complexos e residem em cenários inacessíveis à opinião, o caso aparece como democrático por excelência: sobre o caso todos podemos opinar, e para opinar bastam os saberes mais comuns: quem não tem experiência do que significa uma família, um pai, uma mãe ou um filho? (A observação não se aplica ao caso extremo do menino doente, M.M.) Estamos diante do particular que demonstra ser universalmente compartilhado. O caso parece um cenário democrático porque permite pronunciar-se sem necessidade de qualquer saber além daquele que todo mundo acredita possuir, e sua reconfiguração dos limites entre o público e o privado também parece ir em um sentido democrático. Aqui se trataria da expansão do privado sobre o público e da correlativa conversão do privado em público.
No entanto, as coisas não param por aí. Porque o caso, que apresenta, frente à abstração ou à distância dos grandes princípios gerais, sua qualidade concreta e próxima, não se satisfaz com ela. Num passe rapidíssimo, o caso começa a valer de maneira geral, e passam a ser emitidos juízos que não têm nada a ver com o destino dos personagens do drama e sim com a relação do drama com as instituições: de repente a justiça dos juízes é julgada pela justiça do senso comum, e esta pretende mostrar-se, como não poderia deixar de ser, mais humana, mais compreensiva e mais <natural>. O caráter formal dos procedimentos institucionais se converte numa carga iníqua e intolerável. De repente, tudo é questionado: o drama privado, que a televisão espetacularizou como drama público e nacional, fornece procuradores que acusarão a instituição judicial porque ela seria cega aos desdobramentos concretos do drama privado, que, para ser medido no cenário midiático, teve de converter-se, sem maiores deferências, em drama público”.
Depois da extensa citação, sugiro ao leitor que releia a frase entre aspas da professora Débora Diniz. Para facilitar as coisas, copio o essencial: “Quando entra o cenário do espetáculo, as pessoas não aprofundam o argumento e vão para o periférico (….) Quem passa pela mesma situação fica com medo do espetáculo e de apresentar sua história, que permitiria um debate público civilizado”.