Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A difícil transição do discurso para a conversa, no jornalismo online

Não há tema mais apaixonante nas redações de jornais e revistas do que a questão dos comentários de leitores. A divisão de opiniões e imediata e quando já existe alguma experiência anterior, o rosário de queixas e lamentações é quase interminável. Nada parece ser mais perturbador para um profissional com mais de 30 anos do que a perspectiva de ter que enfrentar leitores questionadores, insistentes quando não agressivos.


 


Ao ler o livro Citizen Journalism – Global Perspectives ( Jornalismo Cidadão – Perspectives Globais, ainda sem tradução em português) encontrei um capítulo relativo a uma pesquisa feita entre profissionais da redação do jornal inglês The Guardian, tido como um dos cinco mais webificados[1] do mundo. Surpreendentemente, a maioria dos 33 jornalistas entrevistados admite que ainda se sentem muito desconfortáveis com a interatividade online.


 


O Guardian é um dos raros grandes jornais mundiais que estimulam comentários de leitores, chegando inclusive a criar uma seção especial chamada Comment is Free. O The New York Times já permitiu comentários no final das matérias publicadas na sua versão online, mas depois suspendeu o serviço por pressão dos seus repórteres e editores.


 


Hoje o Times abre comentários só para algumas matérias específicas e mantém também uma página destinada a questões polêmicas da atualidade onde os leitores podem postar comentários.


 


A resistência as redações a uma convivência mais intensa com o público consumidor de informações tem origem no fato de que ela contradiz uma série de rotinas e valores muito entranhados no dia a dia dos profissionais, bem como numa conjuntura muito específica na qual os comentários funcionam com uma verdadeira catarse dos leitores.


 


A pesquisa do Guardian mostrou profissionais frustrados com a violência da média dos comentários recebidos, embora ressaltando que o fenômeno está diminuindo de intensidade. A observação mais freqüente foi a de que os comentários desafiam a autoridade do jornalista e argumentaram que “a credibilidade (dos jornalistas) é constantemente posta em dúvida, sem que os profissionais tenham condições de conferir a dos leitores”.


 


A análise dos dados colhidos pela pesquisadora inglesa Jane Singer e publicados no livro Citizen Journalism, mostram que em matéria de conteúdos produzidos por leitores, a maioria dos jornalistas profissionais ainda pensa em termos da divisão nós e eles, onde eles são os leitores. 


 


Três temas são os que mais dividem as opiniões dos jornalistas profissionais no item conversa com leitores: responsabilidade, autonomia e exatidão. No primeiro ponto, os entrevistados afirmam que tem a obrigação de prestar contas sobre o que foi publicado enquanto os leitores não têm esta preocupação quando produzem notícias.


 


Já com relação à autonomia, os profissionais se queixam que estão sendo patrulhados pelos leitores, o que limitaria a liberdade de ação de repórteres e editores, enquanto no quesito exatidão, as divergências são ainda maiores. Os profissionais dizem que é impossível confiar integralmente em dados e fatos fornecidos pelo público.


 


A pesquisa tem o mérito de explicitar uma série de questões que grande parte dos profissionais simplesmente prefere esquecer. São reações naturais , se levarmos em conta que é toda uma rotina que está sendo alterada e os valores profissionais não mudam da noite para o dia.


 


Mas a substituição do discurso pela conversa no exercício do jornalismo parece irreversível se levarmos um raciocínio muito simples. Se admitirmos que na complexidade da sociedade atual ninguém pode assumir que sabe tudo, então há sempre alguém que sabe o que eu não sei. No jornalismo, isto significa que não há formas de reproduzir numa notícia todas as variáveis que participam na conformação de um contexto.


 


É preciso lembrar que o jornalista faz a representação da representação, ou seja, ele reproduz aquilo que uma ou mais pessoais reproduziram sobre um fato ou sobre o depoimento de terceiras pessoas. Ao produzir o seu texto, o jornalista submete os fatos e depoimentos ao seu filtro pessoal, por mais que ele tente ser isento. Se estes fatos e depoimento já passaram por outros filtros anteriores, a distância em relação à chamada realidade pode ser grande.


 

Assim, como a função do profissional é chegar o mais perto possível daquilo que se convencionou chamar verdade, ele não pode prescindir da conversa com os leitores porque são eles que lhe proporcionarão a diversidade de representações. Por isto a atitude de resistência ao diálogo com os consumidores de informações, além de ser informativamente equivocada, também cria barreiras em relação ao público, vai na contramão da fidelização de usuários.  




[1] Webificar – neologismo criado por fanáticos da computação para expressar o grau de integração de uma empresa às rotinas e valores surgidos em torno da Web e da internet.