Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ditadura não começou em 1968

Boa sacada, a do Globo, de marcar os 40 anos do AI-5 com uma série de matérias sobre “o traje civil da ditadura militar”. Como diz a chamada da primeira delas, do repórter Chico Otavio, “a ditadura não estava sozinha quando iniciou os anos de chumbo no Brasil. Seja com apoio aberto ou indiferença, a sociedade civil fez sua parte”.


Fez a sua parte, antes de mais nada, para a consumação do golpe de 1964, de que o AI-5 foi o paroxismo – mas não uma excrescência, ou um desvio aberrante da lógica do regime.


O Estado de S.Paulo, a propósito, deu ao caderno especial sobre a infâmia de 13 de dezembro de 1968 o título “A liberdade assassinada”. Na realidade, o trucidamento começou no 1º de abril de quatro anos antes, com a derrubada do presidente João Goulart. Presidente “constitucional”, assinala em boa hora o texto de abertura de Carlos Marchi, no jornal que nunca se arrependeu de sua participação no golpe a que chamaria de “revolução”.


A rememoração desta semana, portanto, requer não só que se respeite o calendário da história, mas também, quando se destaca a pressurosa colaboração civil para a plenitude da ditadura, como faz o Globo, que não se omita a inestimável contribuição da mídia para o seu advento.


Se a recusa do Estado a se autocensurar, e a encobrir a censura que lhe foi imposta na sequência do Ato 5, foi o melhor momento de sua história, o pior momento da história da imprensa brasileira foi a sua cumplicidade ativa, em nome da democracia, na construção do seu oposto.


À época, é bem verdade, forças sociais antagônicas entre si compartilhavam no Brasil do pouco-caso pela democracia como valor universal.


Para a direita com que a imprensa se alinhara, a supressão das liberdades democráticas era um preço até módico a se pagar contra os projetos progressistas – as “reformas de base” – do governo Goulart. Para ampla parcela da esquerda, a democracia dita burguesa era uma barreira ao progresso social. “Liberdade sem comida/ é mentira/ não é verdade”, ensinava, antes do golpe, uma canção [“Zé da Silva é um homem livre”, música de Geni Marcondes e letra de Augusto Boal, gravada no disco “O povo canta”, de 1964].


Mas os ares dos tempos idos não podem servir para justificar o injustificável. Também houve época em que o trabalho escravo era aceito por muitos como parte da ordem natural das coisas. Nem por isso é menos abominável. Golpes de Estado, também.


A chamada grande imprensa, com uma única exceção, aceitou as violências do novo regime, os seus “excessos”, conforme o abjeto eufemismo em voga. Os jornais não se indignaram com a mais brutal manifestação a céu aberto do golpe recém-vitorioso: o desfile pelas ruas do Recife do sexagenário comunista Gregório Bezerra, amarrado a um veículo militar.


Estamos falando, repita-se, de 1964 – não de 1968.


A exceção foi o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Golpista, tinha publicado na primeira página os editoriais “Chega”, “Basta”, “Fora”, clamando pela cabeça de Goulart. Mas, já na edição de 3 de abril de 1964, o editorial era “Terrorismo, não”, denunciando a truculência da polícia do governador carioca e arquigolpista Carlos Lacerda.


O Correio, em que escreviam jornalistas da estatura de Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves, Márcio Moreira Alves, Otto Maria Carpeaux e Paulo Francis, se transfigurou em porta-voz da oposição. Asfixiado pelo governo, morreu de inanição em junho de 1974.


Do que se publicou nestes dias sobre o AI-5, mantenha-se diante dos olhos, para que se conte a história como a história foi, o irrepreensível comentário do professor Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense, no Globo de domingo (7/12):




”A dimensão militar da ditadura está bem estudada. Mas ainda falta, e muito, estudar e refletir sobre a dimensão civil da ditadura. Pois a ditadura brasileira, sem nenhuma dúvida, em todos os seus momentos, foi uma ditadura militar e civil. Sem os civis, ela não teria começado, nem durado, como durou. Em uma palavra: sem os civis ela simplesmente não teria existido.”



Sem a imprensa, tampouco.