O ataque contra a revista francesa Charlie Hebdo acelerou a rotação da espiral de violência na Europa onde está cada dia mais difícil separar o que é causa e o que é consequência em matéria de conflitos sociais, étnicos, religiosos e políticos.
A sucessão de irracionalidades acabou entrelaçando o radicalismo da extrema-direita islamofóbica e a militância bélica de grupos fundamentalistas surgidos dentro da comunidade de imigrantes árabes no Velho Mundo. Estamos no limiar de uma situação paradoxal onde um extremismo alimenta o outro, com o risco de tudo ficar fora de controle.
O encadeamento de atos de radicalismo político está gerando uma armadilha onde a população acabará refém da polarização entre extremistas da direita e os de grupos marginalizados, sejam eles de origem árabe, ou dissidentes ucranianos, ilegais africanos na Europa ou militantes afegãos.
Este fenômeno já está contaminando a Europa inteira, até mesmo países considerados idílicos em matéria de convivência social, como Suécia, Noruega e Dinamarca. A cada avanço político da extrema-direita neonazista e anti-imigrantes, corresponde mais um ato de irracionalidade por parte de segmentos sociais marginalizados que a cada dia que passa mostram uma rejeição mais forte ao modus vivendi do Velho Mundo.
É uma situação complexa diante da qual os julgamentos morais são irrelevantes porque tendem a justificar apenas os valores e crenças de um lado do conflito. A Europa paga hoje o mesmo preço que os Estados Unidos, pelo fato de ter se transformado numa ilha de prosperidade cercada por miséria. Os europeus não conseguirão mais impedir o fluxo de refugiados árabes e famintos africanos nem com a construção de muros de duvidosa eficácia, como o que tenta impedir a emigração ilegal de mexicanos para os Estados Unidos.
Também é pouco eficaz tentar submeter refugiados e imigrantes às regras jurídicas e institucionais da Europa porque árabes e africanos não as reconhecem como solução para seus problemas de discriminação e fome. Enquanto os governos continuarem justificando um endurecimento da repressão ao terrorismo como forma de manter o que chamam de paz social, mais eles se tornarão prisioneiros da armadilha montada pela extrema-direita e pelo inconformismo dos segmentos sociais marginalizados.
O problema é que os políticos se movem por uma lógica eleitoral e por uma irracionalidade estratégica que acaba funcionando como jogar gasolina para apagar um incêndio. Diante da radicalização social, a continuidade no poder passa a ficar cada vez mais dependente de votos da direita, civilizada ou não. No lado oposto, os aspirantes ao poder numa eleição são empurrados para a busca de apoio entre fundamentalistas, civilizados ou não.
Sobram dois segmentos sociais com capacidade de romper o nó górdio da espiral da violência: o setor empresarial e a opinião pública. Os empresários são diretamente afetados pela radicalização porque ela ameaça os seus negócios, mas o segmento é muito lento em reagir a crises sociais, e somente atua quando muitas vezes já é tarde demais. Sobra a opinião publica, e aqui aparece o papel da imprensa como fator de mudança.
Mas também aqui é clara a resistência das empresas jornalísticas em tomar um papel proativo para alertar a população sobre a necessidade de romper o nó da violência social, sob pena de todos acabarem perdendo a sua liberdade de pensar e agir.
A imprensa é no momento o setor que tem melhores condições de propor à sociedade uma mudança na forma de lidar com a espiral da violência, a partir de uma tentativa de compreensão das origens da radicalização direitista e da tendência ao uso do terrorismo por grupos marginalizados. A compreensão não significa cumplicidade e nem impunidade aos extremistas. Tentar compreender significa fornecer elementos para a reflexão coletiva e, com isso, impedir que o passionalismo, a xenofobia e o sectarismo acabem prevalecendo.
A imprensa poderia assumir uma posição ponderada, em vez de aproveitar-se do impacto emocional causado pelo assassinato de jornalistas na revista Charlie Hebdo para endossar o clima de terror social promovido pela polícia e organismos de repressão. Uma atitude como esta pode ajudar às pessoas a assumir posições racionais a partir da publicação de abordagens jornalísticas minimamente balanceadas. A imprensa não perde nada, pelo contrário, só ganha porque ela passa a ser uma referência de equilíbrio numa situação critica, em vez de funcionar apenas como uma irresponsável banda de música para aprofundar o conservadorismo de governos, de políticos e aparelhos de segurança.