De todas as mudanças que a internet está impondo ao exercício do jornalismo, a mudança da relação entre profissionais e o público talvez seja a que esteja enfrentando maiores resistências. O motivo é óbvio. Ela implica o abandono de rotinas, comportamentos e valores entranhados há mais de um século na cultura do jornalismo e sua substituição por novos procedimentos ainda pouco estruturados. [Este texto é um desdobramento do post “Comunidades, uma opção estratégia do jornalismo”.]
Ao longo do tempo, os jornalistas incorporaram dois tipos de posturas à sua rotina profissional:
1. A identificação com uma instituição (a imprensa) qualificada como o quarto poder por conta de sua capacidade de influir na formação da opinião pública;
2. Assumir a posição de quem sabe o que é importante para o público consumidor de notícias.
Ambas as posturas os colocavam numa posição de superioridade em relação a leitores, ouvintes e telespectadores. Esta situação começou a perder sentido quando a internet e a computação deram ao público em geral a capacidade de recolher, processar e publicar números, fatos e eventos sem passar pelo filtro da imprensa. Na era digital, os jornalistas perderam o controle sobre a captação de notícias e sobre a sua publicação. A agregação de valor é a área onde eles ainda são predominantes.
Esta inversão de posições colocou os jornalistas diante do dilema de buscar uma nova relação com o público, já que a as mudanças tecnológicas eliminaram o desnível entre profissionais de imprensa e consumidores de notícias. Surgiu a expressão “engajamento comunitário” como uma espécie de síntese das novas exigências em matéria de comportamento social dos jornalistas, numa era em que a informação passou a ser a matéria-prima mais valorizada tanto na economia como no quotidiano das pessoas.
Quando o público tem nas mãos uma ferramenta de publicação igual a que os jornalistas dispõem, a relação entre as duas partes passa a ser de igual para igual. Ambos, pelo menos em teoria, têm as mesmas condições de capturar uma notícia e a disseminar por redes sociais ou pela imprensa analógica e digital.
Mas uma grande diferença sobrevive: o profissional foi treinado para lidar com dados, informações e conhecimentos, enquanto o público faz um uso intuitivo de uma notícia, salvo raros casos em que o individuo dispõem de conhecimentos sobre leitura crítica da realidade. É este diferencial que garante ao jornalista um papel único no fluxo de dados, informações e conhecimentos na internet, seja como membro de uma equipe (empresa), ou como indivíduo (blogueiro).
Lidar com dados significa ter a capacidade de identificar contextos, significados, causas e consequências a partir de fatos, números e eventos inéditos produzidos em vários segmentos da sociedade numa intensidade e volume que já foram classificados como avalancha informativa, a maior de toda a história da humanidade.
A soma de todos esses fatores criou uma situação inédita na qual o jornalista se tornou dependente dos indivíduos e grupos sociais, tanto para colher como para disseminar fatos, números e eventos. Em vez de funcionar apenas como um mensageiro, os jornalistas estão sendo levados a assumir também o papel de interlocutores, ou seja, a coleta de dados passa a ser feita por meio do engajamento ou envolvimento comunitário, como mostrou uma pesquisa de dois anos realizada pela Universidade de Cardiff, no Reino Unido, com quase 100 profissionais na área do jornalismo em comunidades do interior.
A estratégia do engajamento ou envolvimento reduz o papel do profissional como observador distante e – pretensamente – isento em relação ao ambiente social onde ocorre o trabalho jornalístico, e amplia a sua participação no tema ou evento investigado. Até agora o envolvimento era associado com a adesão, o que implicava parcialidade e perda de credibilidade. Mas como indicou o “Engaging News Project”, do Annette Strauss Institute, da Universidade do Texas (Austin), o engajamento em atividades comunitárias não elimina a obrigação de posturas críticas no exercício da atividade jornalística.
Várias outras experiências de jornalismo em comunidades sociais nos Estados Unidos, Finlândia e Austrália mostraram que o envolvimento dos profissionais na vida comunitária permite aumentar não só o conhecimento do ambiente e dos problemas enfrentados pelas pessoas como também cria condições para estimular a confiabilidade mútua entre o repórter e suas fontes locais. Passa a existir uma situação nova em que o jornalista é ao mesmo tempo patrulheiro e patrulhado.
É caso de inúmeros projetos de jornalismo em comunidades que usam o software OpenBlock, que permite criar bancos de dados com informações sobre cada quarteirão de uma cidade permitindo aos moradores e repórteres monitorar o surgimento, reparo e solução de problemas urbanos como saneamento, transporte, segurança, mobilidade, abastecimento de água, luz, telefonia e internet.
Num caso como este fica explícito o envolvimento do jornalista na cobertura de temas comunitários na medida em que ele usa dados dos moradores, muitos dos quais serão obtidos por meio de conversas informais, para interpretá-los e oferecer elementos para que os interessados busquem soluções. Só uma imersão jornalística na realidade comunitária é que viabiliza um tipo de atividade como essa, que obviamente é incômoda para os governantes e empresários que passam a ser monitorados com mais eficiência.