Dois senhores conversam civilizadamente no balcão do cafezinho. Falam da crise na reserva indígena Raposa Serra do Sol.
Às tantas, um deles, sem nem sequer alçar a voz, diz que os americanos é que fizeram a coisa certa.
“Mataram todos eles”, explica.
“É, sim”, responde o outro. “Mas não pode deixar nem um, porque se não eles voltam a brotar”, adverte, como se falasse de uma erva daninha.
O primeiro faz que sim com a cabeça.
Despedem-se e cada um toma o seu rumo.
Aterrador não foi o fato de duas pessoas bem-educadas, trocando idéias numa manhã de sábado, defenderem a limpeza étnica das Américas, com o genocídio dos povos indígenas do continente.
Aterradora foi a naturalidade com que falavam do desejável extermínio.
É dessa naturalidade que se fazem os holocaustos: se não os seus perpetradores diretos, os demais que os consideram devidos e necessários são quase sempre “gente como a gente”, levando o que se costuma chamar vida normal, crença em deus incluída.
Para além do horror diante da enormidade entreouvida, fica a fascinante questão de como se formam as mentalidades – e como, ao mesmo tempo em que se constituem e consolidam, elas filtram as informações que a mídia transmite sobre os fatos da vida.
Às vezes, nem precisa: as informações já chegam filtradas pela própria mídia. É de se perguntar se, no caso da Raposa Serra do Sol, para o qual os cavalheiros do cafezinho já tem a solução final na ponta da língua, a imprensa cobre e comenta com equanimidade as razões e as ações das partes em confronto.
Nos conflitos que envolvem grupos com os quais a maioria do público se identifica, por motivos, digamos, naturais, em detrimento dos seus antagonistas, todo o cuidado haverá de ser pouco para que o jornalismo não apresente as posições da outra parte – outra em múltiplos sentidos – de modo a despertar o que a gente como a gente, de tudo quanto é gente, tem de pior.
Se a naturalidade do mal já está aí 24 horas por dia, à espera de qualquer pretexto para se externar, que dizer quando, mesmo não se dando conta, muito menos de caso pensado, a imprensa lhe dá alento.
Está para nascer o jornalismo capaz de domar os demônios da natureza humana – nem essa é a sua ambição. Mas poucas coisas hão de ser tão fáceis como abrir-lhes a jaula.