No seu histórico discurso do “Eu tenho um sonho”, de 1963, Martin Luther King falava do dia em que os seus filhos não seriam julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter.
A partir de hoje, 20 de janeiro de 2009, a mídia precisa julgar Barack Hussein Obama não mais pela singularidade de sua trajetória, nem tampouco pelos notáveis atributos de sua personalidade pública, mas pelo conteúdo de suas decisões como o governante mais poderoso do mundo.
É improvável que o faça. Decerto não já.
Durante sabe-se lá quanto tempo, uma cordilheira de obstáculos estará no caminho de qualquer projeto sério de cobrir criticamente o presidente Obama. Os motivos são gritantes, a começar da cor de sua pele.
É da tradição americana a imprensa conceder um crédito inicial de confiança aos novos ocupantes da Casa Branca, sob a forma de reportagens e editoriais “corajosamente a favor”, como reza a ironia. São os tais 100 dias de graça – embora, conforme o presidente e as circunstâncias, possam se estender por mais tempo. Foi o que aconteceu com John Kennedy e Ronald Reagan, por exemplo.
Imagine-se então a amplitude do crédito e a relutância da mídia em contabilizar débitos do primeiro presidente negro de um país em que o preconceito, embora não mais a discriminação legal, é uma fratura ainda exposta – como lembrou o próprio Obama no seu superlativo pronunciamento de março passado sobre a questão racial nos Estados Unidos. E como sacou brilhantemente o jornal satírico The Onion (a cebola) ao soltar a seguinte a manchete quando ele se elegeu, em 4 de novembro: “Negro recebe o pior emprego da América”.
A cor é essencial, no caso, mas não é tudo, algo que jornalistas, leitores e tutti quanti estão fartos de saber. O resto – e ponha-se resto nisso – é a pessoa: sua história, suas visões, suas palavras, sua figura pública, sua família, sua cultura… é tudo um deslumbre.
Desde que irrompeu na cena mundial, a imprensa, siderada, esgotou, como diz o lugar-comum, o seu estoque de adjetivos e advérbios para descrever o líder político mais fascinante desde, quem sabe, o jovem Fidel Castro (juízos de valor à parte) e mobilizou pencas de estudiosos das ciências do comportamento e da indústria da comunicação para explicar as razões desse fascínio sem fronteiras.
E se isso ainda fosse pouco, a crise econômica e a tragédia do Oriente Médio fecham o círculo. Até parece que a deterioração da conjuntura internacional fez aumentar as esperanças na capacidade de Obama de transformar o seu país, se não o mundo, colocando a sua liderança carismática a serviço de propostas racionais de reforma econômica e social. E também parece que essas esperanças crescem à medida que ele, antimessias por convicção ou por cálculo diz que as coisas ainda vão piorar antes de melhorar.
Guardadas as enormes diferenças entre as duas situações, a confiança de 79% dos americanos em Obama – o mais alto índice com que um presidente americano assumiu, pelo menos nos últimos 30 anos – lembra o nível da confiança alcançado por George W. Bush quando, depois do 11 de Setembro, ele declarou “guerra ao terror” e mandou invadir o Afeganistão, antes de lançar o seu país no inferno iraquiano e erigir a tortura em política legítima de segurança.
Parte do júbilo em torno de Obama vem de ele ter a sorte monumental de assumir o lugar do mais odioso presidente que os Estados Unidos já tiveram até onde chega a memória.
A torcida mundial por Obama arregimenta uma imensa legião da boa vontade, formando um clima de opinião que inibe o jornalismo crítico. Só faltam dizer que Obama fará o dia nascer.
“A obsessão das pessoas com Obama sempre disse mais delas do que dele”, observa um dos poucos céticos circulando pelas tribunas da imprensa, o correspondente em Nova York do Guardian de Londres, Gary Younge, negro originário de Barbados, escrevendo na revista americana The Nation.
“A maioria [dos não americanos] desejava uma mudança de paradigma na política global, e, incapaz de eleger governos que poderiam lutar por isso, simplesmente transferiu esse papel a Obama. O seu silêncio durante o bombardeio de Gaza, entretanto, acalmou a exaltação de muitos. Como democrata característico, ele encabeça um partido que em qualquer outro país ocidental seria considerado de direita em política externa, de centro em política econômica e de centro-esquerda em política social.”
Além disso, a mainstream media – não no sentido de imprensa convencional, mas de imprensa conservadora mesmo – só esguicha elogios aos nomes pinçados por Obama para a sua equipe. As suas escolhas, especialmente nas áreas de economia, defesa e segurança, dissiparam quaisquer temores de que ele ergueria alto demais, talvez, a bandeira da mudança em que se enrolou para se eleger com a militância e os votos do que a América tem de mais progressista.
Com audíveis suspiros de alívio, jornalões e revistonas – para não falar nos mercadões – celebraram a primazia do “pragmatismo” de Obama sobre o seu “idealismo”. E balançaram a cabeça em sinal de aprovação quando ele convidou para jantar, dias atrás, dois dos mais encardidos colunistas conservadores dos Estados Unidos. Na véspera da posse, ele jantou com o senador McCain.
[Em outro departamento, gostaram também de saber que as filhas de Obama foram matriculadas numa escola particular.]
Ah, o novo secretário do Tesouro, Tim Geithner, deixou de pagar US$ 34 mil em impostos entre 2001 e 2004? Deixa para lá: não foi sonegação, mas um “equívoco inocente”.
Dos grandes nomes da mídia americana de qualidade, aparentemente só a colunista Maureen Dowd, do New York Times – que tem um faro especial para essas coisas, como chamou a atenção do blogueiro o leitor Anthony Knopp – ousou criticar Obama por ele mostrar desde já uma “inquietante despreocupação” em saber se o seu time de sonho é chegado a driblar as regras, “porque, afinal, eles são os melhores e os mais brilhantes, não pessoas comuns’.
Seria o suprassumo da mentalidade espírito de porco desejar que Obama, aconselhado por essa gente cheia de si e de rabo preso com o passado, dê uma pisada no tomate só para que a imprensa hipnotizada mexa os olhos arregalados e trate Obama, com todo o respeito e admiração pelo estupendo triunfo que é a sua vida, como o que afinal se tornou: um político sem dúvida excepcional por qualquer critério (menos o da experiência administrativa) e em qualquer tempo e lugar, mas, ainda assim, um político – e não um redentor da América, de pele escura.
Já faltou o grão de sal no noticiário sobre o modo como ele escolheu marcar a passagem do feriado de Martin Luther King, na segunda-feira (19), pintando paredes de um abrigo para jovens sem-teto em Washington.
Pode perfeitamente bem ter sido um gesto vindo do fundo da alma e de suas convicções sobre a pedagogia do exemplo – e adequado, de mais a mais, à data que os americanos dedicam à importância moral do trabalho voluntário. Mas, fosse outro o presidente, outra também seria, talvez, a reação da imprensa ao espetáculo midiático.