Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A jovem mídia e os mamutes de papel

Embora um tanto devagar para os padrões do ofício, aos poucos a imprensa brasileira começa a expôr ao grande público os dilemas existenciais – nesse caso o chavão procede – que em toda parte passaram a assombrar o jornalismo desde o fim dos tempos dourados em que era reverenciado como o Quarto Poder das democracias.


Esses dilemas, aliás, embutem um paradoxo. Enquanto, de diversas formas, ela mesma se tornava inseparável dos acontecimentos e protagonistas que promove à condição de notícia – incorporando-se, portanto, aos poderes que competem entre si nas “sociedades da informação”–, a chamada mídia convencional foi tomada por uma crise de identidade da qual não sabe como, ou se, sairá.


No Brasil, o leitor comum conhece apenas pela rama o que provocou e no que pode dar a crise: nossos jornais, numa mistura de insegurança e soberba, nem sequer têm editorias de mídia como as dos congêneres americanos e europeus, que seguem e comentam o desempenho do setor no dia-a-dia, indo muito além da cobertura – cada vez mais importante, é verdade – dos negócios desse oligopólio em que a atividade se transformou.


Ainda assim, vão pingando nos diários brasileiros, já menos raramente, textos sobre o impacto da internet para o jornalismo tal qual o entendemos – um aspecto central, mas decerto não exclusivo, da sua crise. Na teoria, a jovem mídia, com os seus opulentos espaços abertos a todos, inaugura o reino da liberdade na comunicação social, em contraste com as restrições elitistas dos mamutes de papel.


À parte o deslumbramento e a simplificação, tamanha é a riqueza do assunto que é uma pena que só os frequentadores de sites e blogs especializados tenham tido acesso, no Brasil, ao que de melhor se escreveu a respeito nos últimos tempos – o caudaloso artigo de Eric Alterman, em recente edição da revista New Yorker, intitulado, em tradução livre, “Fora de circulação”, com o sub-título irônico “A morte e a vida do jornal americano”.


[Ver ‘O relógio e o calendário‘ e ‘A sobrevivência dos jornais impressos‘]


Um dos seus achados foi o de remeter o leitor ao debate de idéias que antecipou, já nos anos 1920, as diferenças de visão entre o jornalismo impresso e o que viria contestá-lo. Os debatedores foram dois notáveis intelectuais americanos de seu tempo, o pensador político e precursor dos estudos de mídia Walter Lippmann (1889-1974) e o filosófo e educador John Dewey (1859-1952).


No clássico “Opinião pública”, de 1922, o cético Lippmann sustentava que, nas complexas sociedades contemporâneas, a democracia pede mais das pessoas do que elas podem dar: decisões (eleitorais, entre outras) baseadas em conhecimentos firmes sobre as questões de interesse comum que as afetam. E isso porque a imprensa, da qual dependem, é a primeira a não dar conta do recado.


Ele dizia que as populações só se interessam pelos acontecimentos quando a mídia os trata, melodramaticamente, como conflitos. E que o jornalismo não conseguirá resolver o problema do déficit de informação – e de atenção – do homem da rua, apenas ocupando-o com os eventos por 30 minutos a cada 24 horas. Nessas condições, considerava inepta a imprensa e praticamente irrelevante o debate público dos assuntos correntes.


Quem sabe, um dia, com as redações dirigidas por profissionais cada vez mais bem educados e cada vez menos dependentes dos grupos de pressão, especulava, uma elite jornalística poderia suprir as inevitáveis lacunas dos leitores. Mas as relações deles com os seus “provedores de conteúdo”, na intragável expressão agora em voga, seriam mínimas, e o seu papel, puramente passivo.


Dewey, o otimista, respondeu em 1927 com “O público e os seus problemas”. Sem contestar as teses de Lippmann sobre as limitações do jornalismo e o seu potencial para manipular o povo, ele acreditava que a informação recebida era menos importante, para a boa decisão, do que a compreensão dos temas em jogo, a partir do compartilhamento de experiências vividas.


Ficou famosa a sua analogia: “O homem que calça o sapato é quem sabe onde o aperta, embora o calçadista competente seja quem saiba como eliminar o incômodo.” Esse o princípio implícito no credo do ativismo dos não-jornalistas na internet. Para eles, contra os iluminados que escolhem o que é notícia e pretendem formar a opinião alheia sobre ela, o advento da internet ofereceria uma alternativa emancipadora.


Diante das questões do momento, se constituiriam comunidades virtuais em que todos seriam igualmente fornecedores, receptores e debatedores de informações, para, por exemplo, apontar aos governantes os caminhos a seguir e a evitar. Mais ou menos como fazem os editoriais da imprensa, porém com a legitimidade incomparavelmente maior nascida do intercâmbio democrático de fatos e idéias entre legiões de internautas.


A consigna um tanto pedante disso é “criar uma narrativa capaz de se contrapôr ao discurso da mídia convencional” – presumivelmente monolítica na maneira de abordar o mundo, ainda que não ao traduzi-lo. A pergunta óbvia, de todo modo, é se querer é saber. Como apurar, comprovar e interpretar eventos distantes do âmbito dos conhecimentos e da experiência imediata de cada um? E esse, afinal, é o miolo de toda “narrativa” jornalística.


A diferença entre o jornalista profissional e o jornalista-cidadão – ou, por outra, entre as formulações de Lippmann e de Dewey – é que aquele foi treinado para observar, conferir, relatar e buscar explicações para os fatos. “A vasta maioria dos repórteres e editores dedicou anos, às vezes décadas, para entender os temas de suas matérias”, escreve Eric Alterman, que não se distingue propriamente pela condescendência com a profissão.


Além disso, a imprensa de qualidade de há muito adotou procedimentos de certificação de seu material, simplesmente fora do alcance do mais íntegro blogueiro individual. E, se mesmo assim, os jornais erram – e como erram! – imagine-se a alternativa.


Publicado também no Estado de S.Paulo de hoje.