A comparação parece despropositada, mas é justamente o que acontece com 99% das notícias publicadas na nossa imprensa. A gente só se dá conta desta relação absurda quando lê, ouve ou vê algo que nos toca diretamente, e sobre o qual conhecemos minimamente suas causas, consequências, prejudicados e beneficiados.
Isto aconteceu há dias com o fundador do Observatório da Imprensa, Alberto Dines, ao ser envolvido no escândalo HSBC por uma notícia tratada como se fosse um quilo de batatas. O texto publicado desprezou elementos básicos na avaliação de uma notícia – como a verificação de sua exatidão, situá-la no contexto humano, social, político e econômico, sem falar na obrigatoriedade de consulta aos envolvidos. O pior é que deslizes como este acontecem diariamente e a gente só se dá conta dos efeitos quando conhece os protagonistas ou as situações focadas na notícia.
A imprensa é um negócio e como tal gera um produto para ser comercializado. Nisso ela se aproxima do negócio de um produtor de batatas. Mas há uma diferença fundamental. Para vender batatas, o comerciante se preocupa prioritariamente com a aparência saudável do produto. Mas quem “vende” uma notícia ao publicá-la junto com anúncios não pode priorizar apenas o que é visível, e há uma razão central para isso.
Na maioria dos casos, uma notícia envolve pessoas que têm história, têm parentes, amigos e conhecidos, que ocupam ocupa uma posição social, têm uma reputação construída ao longo da vida e têm um futuro pela frente. Quando a notícia é tratada como um produto para venda, o repórter ou editor se preocupa basicamente com a sua aparência, ou seja, a capacidade de atrair a atenção do público e com isso levá-lo a ver também os anúncios pagos que sustentam o veículo jornalístico.
Não é fácil produzir uma notícia levando em conta todos estes fatores. Um jornal, revista, telejornal, página noticiosa na Web ou noticiário radiofônico são produzidos numa linha de montagem. Há prazos determinados, formatos obrigatórios, políticas editoriais a serem seguidas e prioridades operacionais a serem respeitadas. Tudo isso interfere na atividade de um repórter ou editor, que muitas vezes precisa dar mais atenção a esses fatores do que ao conteúdo da notícia.
Mas o jornalista tem uma responsabilidade inalienável que é a de saber que está tratando com pessoas, e não com batatas. Quando o profissional abre mão dessa diferença ele está renegando a sua própria profissão. As pessoas não compram jornal, revistas ou assistem a telejornais para comprar tubérculos, mas sim para saber o que pode afetar suas vidas, de forma positiva ou negativa. Comer batatas preenche uma necessidade fisiológica. Receber notícias atende a uma exigência do convívio social.
Uma notícia descontextualizada ou inverídica – noutras palavras, irresponsável – pode acabar em perda de vidas humanas, algo irreversível, ao contrário de uma intoxicação causada por um alimento estragado. Há centenas de tragédias humanas provocadas por notícias irresponsáveis, e sua consequência mais grave é que, quando isso acontece, os jornalistas raramente tomam conhecimento dos desdobramentos de sua falta de cuidado na apuração, redação e publicação.
Quando algum caso ganha notoriedade por conta das suas consequências, a culpa geralmente é atribuída ao profissional e ninguém se preocupa com o sistema que gerou a publicação irresponsável. O modo industrial de “fabricar” uma noticia e a preocupação com os seus resultados financeiros ou políticos estão na origem da maioria dos desvios éticos e sociais na prática do jornalismo diário.
A preocupação com o tratamento adequado de notícias se tornará ainda maior na medida que as redes sociais ocuparem espaços mais amplos como fonte de informação das pessoas. A reprodução viral de dados falsos, rumores alarmistas e boatos difamatórios tende a crescer, fora do controle da imprensa, num processo irreversível e que vai exigir muito mais do que novas leis e códigos. Todos nós teremos que ser protagonistas ativos na filtragem e contextualização de dados, fatos, eventos e notícias.
Aos leitores: O primeiro e o último parágrafos foram alterados para corrigir problemas na transcrição do texto original para a página do Código Aberto. Pedimos desculpas aos leitores.