O jornal O Estado de S.Paulo mexeu numa abelheira ao pedir que seus leitores denunciem problemas de segurança em casa noturnas, prometendo investigar os casos apontados. Em tese o jornal adotou uma solução conhecida como crowdsourcing, ou seja, recorrer à sociedade para investigar um caso cujas dimensões superam a capacidade da redação de apurar todos os detalhes.
Não é o primeiro jornal a fazer isso, porque na Europa e Estados Unidos várias publicações importantes – como o inglês The Guardian e o norte-americano The Washington Post – já recorreram aos leitores para esmiuçar documentos incriminando parlamentares ou funcionários públicos.
O que surpreende no caso da iniciativa do Estadão é que, embora ela esteja carregada de boas intenções ao procurar envolver a comunidade de leitores num patrulhamento coletivo, as reações publicadas no blog do jornal não foram muito simpáticas, para dizer o mínimo. Dos 128 comentários postados até às 11 horas de quarta-feira (30/1), a maioria criticava o pedido considerando-o ineficaz e absurdo.
Os comentários formam pouco mais de 1% de todos os 11.500 leitores que recomendaram a sugestão para reflexão no mesmo período de tempo. É mais ou menos a norma na internet, onde para cada 100 leitores, um publica algo. Mas o que nos leva a pensar é por que tanta reação a uma proposta que, em tese, deveria ser acolhida positivamente porque busca envolver comunidade e jornal no monitoramento de um problema que afeta a todos?
A questão toda está na herança maldita de nossa dependência do paternalismo estatal. A grande maioria dos comentários exige a cobrança de medidas das autoridades e a punição dos culpados, quando todos sabemos que os poderes executivos, legislativo e judiciário não têm mais capacidade para administrar uma sociedade complexa como a que vivemos.
Essa incapacidade resulta de fatores estruturais como a implantação de um número cada vez maior de controles e regulamentações, o que exige um gigantismo burocrático cujo funcionamento tende a ser cada vez menos eficiente por conta do custo crescente dessa mesma burocracia. Resulta também de fatores conjunturais como a corrupção galopante, omissão, corporativismo, interesses político-partidários e toda uma série de fatores de domínio público.
Não adianta cobrar mais do aparato estatal porque ele se transformou num sistema que, em primeiro lugar, busca a sua própria sobrevivência e, em segundo, quando possível e quando interessa, servir ao público que paga impostos. Esta realidade não significa que estejamos apontando a solução neoliberal do Estado mínimo, mas sim a de que a sociedade deve assumir seu protagonismo, no mínimo, em interesse próprio.
É aí que entra o caso das boates sem segurança. Os relatos e denúncias de casos de ineficiência, corrupção, favoritismo e omissão das autoridades encarregadas da observância de normas de segurança em casas noturnas já se tornaram monótonos, tal a sua frequência e amplitude. Quando ocorre alguma tragédia, surge de imediato uma onda de protestos e a inevitável reação dos acusados prometendo soluções radicais e imediatas que, todos sabemos, serão esquecidas quando a imprensa passar a tratar de outra tragédia.
Por isso não resta alternativa senão assumirmos, como comunidades, o monitoramento da segurança de locais públicos. O ideal seria que esse monitoramento fosse uma parceria entre a sociedade e a imprensa, mas como os jornais, revistas, rádios e TV são basicamente uma indústria, suas decisões são orientadas por interesses que geralmente não coincidem com os dos cidadãos. Por isso, a iniciativa do Estadão pode ser um passo na direção certa e um fator de aproximação entre os leitores e o jornal.
As incógnitas são muitas sobre o futuro da iniciativa. Primeiro, porque ainda não se sabe se ela obedeceu aos imperativos do marketing do jornal ou ao desejo de dar voz e responsabilidades aos leitores. O monitoramento implica responsabilidades de ambos os lados para ser efetivo e merecer a confiança da população. Do jornal, em respeitar a opinião e sugestões dos seus leitores cumprindo a promessa de investigar. Dos leitores, ao fazer denúncias minimamente consolidadas.
Não é um processo simples, porque há inúmeros fatores que complicam a iniciativa. Existe a tendência do público de bater forte na cobrança dos poderes públicos e minimizar as responsabilidades individuais. O raciocínio comum é: se eu pago impostos, tenho o direito de exigir. É um raciocínio correto do ponto de vista da lógica paternalista do Estado, mas irreal na conjuntura concreta de uma sociedade que se tornou complexa demais para ser gerida de forma verticalizada e centralizada.
A abelheira revolvida pelo Estadão não é a primeira e nem será a última protagonizada por um órgão da imprensa. Mas ela dá muito material para que nossos neurônios sejam estimulados a tentar aquilo que é do nosso interesse direto como cidadãos: a sobrevivência em cinemas, teatros, casas noturnas e estádios.