Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A pior ofensa do cartum do profeta-bomba

Os jornais de hoje me estimulam a trazer para o Verbo Solto a questão das charges saídas em setembro em um jornal dinamarquês, cuja republicação na Noruega há poucas semanas incendiou o mundo árabe-muçulmano.

O que penso essencialmente a respeito está no artigo “Mensagem infame: todo muçulmano é terrorista”, no Observatório da Imprensa [http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=366IMQ007].

Mas um artigo transcrito na Folha, “Agora somos todos dinamarqueses”, do colunista americano Jeff Jacoby, do Boston Globe; a crônica “Quando se podia rir de Maomé”, de Zuenir Ventura no Globo; a republicação, também no Globo, do famoso cartum de Jaguar, em que Cristo, na cruz, diz “Hoje, não, Madalena. Estou pregado”; e, por fim, no Estado, a entrevista com o escritor dinamarquês Kare Bluitgen, sob o título “Toda ideologia pode ser criticada”, me fazem pensar que devo insistir num ponto e acrescentar outro.

Artigos, cartum e entrevista têm todos o mesmo argumento: os ferozes protestos islâmicos contra as charges ofensivas revelam uma profunda intolerância em relação ao princípio supremo da democracia: o direito humano à livre expressão, de que são frutos a liberdade de imprensa e a inadmissibilidade da censura prévia.

E tanto esse princípio está integrado ao modo de vida ocidental que mesmo uma piada com o deus dos cristãos (a charge de Jaguar) não levou nenhum membro da maior nação católica do mundo a sair em passeatas violentas ou a ameaçar de morte o seu autor.

Há como que um consenso segundo o qual só podem ser acusados de hereges, sacrílegos ou blasfemos os que de alguma forma ofendem a própria religião. O Estado secular e as leis não têm nada com isso.

De fato, na França, a palavra blasfêmia não aparece nem no código penal, nem na lei de imprensa, ambos do século 19.

Por isso, os democratas do mundo inteiro deveriam se solidarizar com o jornal que publicou originalmente as charges com o profeta Maomé e com todos os que o imitaram (Jeff Jacoby).

Os muçulmanos, por sua vez, deveriam aprender o be-a-bá da tolerância civilizada com o Brasil, onde árabes e judeus “convivem harmoniosamente” e onde até o nome Alá já apareceu em marchinha de carnaval (Zuenir).


Em suma, a livre expressão está para a democracia como o ar para os que não sobreviveriam sem ele. E inseparável da liberdade de imprensa está a lei não escrita segundo a qual “não deve haver pessoa, ideologia ou religião que não sejam passíveis de crítica” (Kare Bluitgen).


Mas, ou muito me engano, ou o problema não é esse.


Claro que tudo e todos são passíveis de crítica. Insisto, no entanto, no que escrevi no Observatório, citando um editorial do jornal londrino The Guardian, cujo ponto-chave também foi ressaltado numa pá de artigos publicados em muitos países: ter a liberdade de manifestar o pensamento não é sinônimo de ter a obrigação de fazê-lo.


Não é porque posso, devo.


E por que não deveria, se posso?


Por uma infinidade de razões – entre elas o respeito pela sensibilidade alheia e pela dignidade de todos.


Posso – e devo – criticar uma autoridade religiosa ou um credo religioso; uma figura política ou uma doutrina política; ou qualquer pessoa que a meu juízo merece ser criticada.


Posso – mas não devo – escarnecer das crenças ou convicções de outros se isso, do modo como foi feito, instigar o preconceito e o ódio contra os adeptos de crenças, convicções e preferências de vida, indistintamente. Portanto, contra determinada parcela da humanidade


Se o fizer, estarei açulando a intolerância, a xenofobia, o racismo – prelúdio para a discriminação, a perseguição, a remoção e, no limite, o extermínio do grupo humano em questão.


Ao caso concreto: das 12 caricaturas de Maomé, uma associa inequivocamente, inextricavelmente, o fundador do islamismo, portanto o Islã, portanto os islâmicos em geral, ao terrorismo.


Como interpretar, de outro modo, a imagem do profeta com um turbante que na verdade é uma bomba, com pavio e tudo?


“As charges não insultam o Islã?”, perguntou a repórter Leda Balbino, do Estado, ao mencionado escritor dinamarquês Kare Bluitgen. A sua resposta:


“Alguns acharam que a charge com Maomé usando um turbante-bomba foi ofensiva ao sugerir que todos os muçulmanos seriam terroristas. Mas o objetivo foi mostrar que há muçulmanos usando Maomé para justificar o terrorismo. Não é uma charge engraçada, mas ela estimula o questionamento.”


Vamos dar de barato, apenas para raciocinar, que o objetivo tenha sido aquele mesmo.


Abre parênteses. E vamos esquecer, por um momento, que o jornal onde a charge saiu pela primeira vez tem a mesma linha do partido dinamarquês de direita que quer proibir aos imigrantes, muitos deles muçulmanos, o acesso ao sistema de seguridade social do país. Daí para mais.


Esse partido, com os 12% de votos recebidos na última eleição dinamarquesa, integra a coligação política no poder em Copenhage.


Então, aquando o colunista americano transcrito na Folha diz que “agora somos todos dinamarqueses”, me pergunto: “Somos quem, cara-pálida?”


Devíamos ser todos dinamarqueses quando os nazistas que ocuparam o país em 1940 ordenaram ao governo local que obrigasse os judeus a usar nas roupas a estrela de Davi que os identificaria como “raça maldita”, e o rei Christian X lhes disse que, nesse caso, ele seria o primeiro a usá-la. Fecha parênteses.


Ora, se o objetivo da charge era mostrar que “há muçulmanos usando Maomé para justificar o terrorismo”, então ela pode entrar para a história do cartunismo como a mais enviesada mensagem que um bico de pena pode produzir.


Basta ver, sem parti pris, para entender.


De modo que, desejando ou não, o autor fez uma caricatura que se ajusta como uma luva à islamofobia compartilhada por um número depressivamente alto de europeus. Estes querem se ver livres dos imigrantes que se dispõem a fazer trabalhos que os outros, os nativos, consideram abaixo do seu nível.


Estando claro assim, penso eu, que não estão jogo nem a liberdade de imprensa, nem o direito de criticar, ou caricaturar, religiões, vamos às manifestações dos ofendidos.


As suas violências, na maioria dos casos, parecem ter sido estimuladas ou toleradas pelo que há de pior no mundo muçulmano – o chamado islamofascismo dos regimes e movimentos fundamentalistas que abominam o Ocidente e querem se vingar dos horrores que os ocidentais lhe infligiram ao longo da história, a começar das cruzadas.


Mas a condenação imitigada que a chamada “rua árabe” faz por merecer não serve para absolver o editor do jornal que teve a infame idéia de autorizar a publicação da charge com o profeta-bomba. Muito menos os editores dos outros jornais europeus que a publicaram de caso pensado, como uma bravata em nome da liberdade de imprensa. Essa enormidade, aliás, a mídia inglesa não cometeu.


E aqui, pedindo desculpas ao eventual leitor que teve a paciência de me acompanhar, chego enfim ao ponto que gostaria de acrescentar ao meu artigo no OI:


A charge que os jornais tinham o direito, mas não o dever, de publicar é antes de tudo um ultraje não aos valores religiosos muçulmanos – mesmo que disso se tratasse, em vez de ser uma expressão de racismo – mas aos valores seculares herdados do Iluminismo, da Revolução Francesa e dos movimentos de emancipação social do século 19, que representam o que o Ocidente tem de melhor e que sobreviveram a todos os fascismos que o ensanguentaram.


Por razões mais históricas do que culturais ou “de civilização”, esses valores são muito menos frequentes no mundo árabe-muçulmano do que seria bom para as suas populações e para a sua coexistência com as outras. A começar da democracia, do respeito aos direitos humanos e da erradicação do fanatismo étnico-religioso homicida.


Publicar na democrática Europa uma charge racista é um crime contra os mesmíssimos valores que os democratas e libertários de toda parte aspiram ver instituídos nos países de maioria muçulmana – a vastidão de opulência e miséria e despotismo que se estende do Norte da África aos confins da Ásia.


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