Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A poção mágica do voto distrital: o retorno


Apresentada ontem numa palestra em São Paulo, a proposta do ex-presidente Fernando Henrique para fazer das eleiçôes municipais do ano que vem um test-drive do voto distrital, na escolha dos vereadores das cidades com mais de 200 mil eleitores, mereceu do Estado chamada de primeira página e, com outras declarações dele, o espaço útil de uma página inteira.


Nenhuma surpresa. Faz tempo que o jornal baba ovo diante de qualquer coisa que FHC diga.


Já a Folha se limitou a um registro de seis parágrafos. O Globo, a um texto um pouco maior, mas que trata menos do voto distrital do que dos fatos diversos sobre os quais o reportariado que foi cobrir a palestra pediu a opinião do palestrante – desde economia à atitude do PSDB na eleição do petista Arlindo Chinaglia, passando pela afirmação do presidente reeleito do PMDB, Michel Temer, de que em 2010 enfim o partido voltará a ter candidato próprio ao Planalto.


Mas vejam a ironia. Foi o Valor, um jornal de assuntos econômicos, o único a cobrir direito o evento – e, em certa medida, a questão. Diferentemente dos colegas dos jornalões, a repórter Cristiane Agostine registrou, e o Valor publicou, outras manifestaçõees além da de FHC.


O próprio título, em vez de se restringir à proposta do ex-presidente, informa que ‘Mudança do sistema eleitoral com validade para 2008 divide partidos’.


Dado que a edição on-line do jornal só é acessível para assinantes, eis a matéria:


‘O voto distrital foi a técnica de um caloroso debate sobre a reforma política promovido ontem pela Associação Comercial de São Paulo e Instituto Fernando Henrique Cardoso. Na defesa mais arraigada do sistema perfilaram-se o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, o deputado Arnaldo Madeira (PSDB-SP), o secretário municipal Guilherme Afif Domingos (PFL) e o cientista político Nelson Rojas (Iuperj). Já os deputados Raul Jungmann (PPS-PE), José Eduardo Cardozo (PT-SP) e Fernando Gabeira (PV-RJ), além do cientista político Jairo Nicolau (Iuperj), levantaram críticas ao sistema.


FHC defendeu que o modelo que divide as cidades em distritos eleitorais com um único deputado federal seja ‘experimentado’ nas eleições municipais, por ser ‘ mais natural ‘ um vereador, por representar demandas regionais, ser eleito pelos eleitores de um distrito. Caso o resultado seja favorável, a iniciativa deveria avançar para as eleições para as Assembléias e Câmara, em 2010 e 2014.


O ex-presidente é favorável ao projeto de Madeira que está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. A maior dificuldade da proposta é encontrar um único desenho de distritos para a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores. Um grupo de geógrafos foi convocado para estudar um modelo que evite que os distritos mudem a cada eleição.


Em levantamento feito por Nelson Rojas, na eleição de 1998, por exemplo, nas 100 maiores cidades, 61 não conseguiram eleger um único representante e 29 elegeram apenas 1. No total, elegeram apenas 10% dos parlamentares da Câmara. Com o voto distrital, defendeu o especialista, tal distorção poderia ser corrigida.


Os defensores do voto distrital apresentam como vantagem um possível barateamento dos custos da campanha, pois a proposta de lei previa que em nos distritos cada partido apresente apenas um candidato. A concorrência ficaria menor e assim diminuiria os custos para fazer a propaganda política. Outro ponto ressaltado é a maior proximidade entre o eleitor e o seu representante. Os eleitores poderiam acompanhar de perto o desempenho de seus escolhidos e cobrí-los diretamente. ‘Imagine um mensaleiro voltando para seu reduto eleitoral, como seriam as críticas’, observou Madeira.


‘Mas eu desconheço o meu eleitor e nem por isso meu mandato é ruim’, provocou o deputado Raul Jungmann (PPS-PE). ‘Lutei para ser um parlamentar da vontade geral e não acho que devo regredir. De onde eu venho, ter contato com eleitor é dar coisas materiais.’


Apesar de apoiar o voto distrital misto, Jungmann atacou o risco de paroquialismo, uma das principais críticas feitas ao sistema. ‘Com isso, pode ter muitos deputados que vão trocar o seu mandato por benefícios para sua paróquia’, criticou. ‘E também não garante a governabilidade’, completou, apoiado pelo doutor em Ciência Política Jairo Nicolau.


Outro ponto que causa divergência é o risco de sub-representação das minorias. Em um distrito com eleitores que simpatizam com a causa ambientalista, por exemplo, esse grupo podería ser desfavorecido caso não haja nenhum candidato que defenda a questão. Há também o risco de manipulação política na divisão dos municípios. ‘A mudança no sistema eleitoral induz mais facilmente a outras modificaçõs e leva a outras discussões, como fidelidade partidária’, disse o ex-presidente no debate.


Bornhausen engrossou o coro dos desiludidos com a chance de ver aprovada uma reforma política: ‘Estou lutando pela reforma política desde 1999. Tivemos cinco projetos aprovados no Senado que não tiveram aprovação na Cãmara e eram projetos de maioria simples.’


Apesar de ser defendido por parlamentares de peso de partidos como PT, PSDB, PFL e PPS, deputados podem não querer votar o projeto com receio de serem prejudicados com a regionalização do voto. ‘Pode haver uma resistência muito grande, especialmente se os deputados acharem que podem perder votos’, apontou Gabeira. Além disso, há também divergência no modelo de voto distrital. O defendido por FHC é o voto distrital ‘puro’, onde cada distrito escolhe seu representante pela maioria dos votos, mas há também o modelo misto, combinando o voto regional com o voto em lista. Dentro do próprio PSDB de FHC esses dois tipos de modelo causam divergência entre os tucanos.’


Em 7 de agosto do ano passado, escrevi neste espaço um artigo alinhando os principais argumentos contrários ao voto distrital no Brasil, ainda mais ‘puro’, como quer FHC, com base em especialistas com no mínimo tanto conhecimento de causa quanto ele.


Reproduzindo:


‘Hoje, cada Estado elege, proporcionalmente à votação de cada partido ou coligação partidária, um certo número de deputados federais em um distrito único, por assim dizer, que é o próprio Estado, uma realidade histórica.


No sistema distrital, o Estado de São Paulo, por exemplo, com direito a 70 deputados, seria dividido em 70 distritos. Em cada um, ganharía o candidato mais votado e ponto. Naturalmente, ninguém poderá se candidatar por mais de um distrito.


Agora, como se recortariam todos esses distritos, para ter aproximadamente o mesmo número de eleitores, como manda a norma? Será uma homérica briga de foice entre os partidos, cada qual querendo distritalizar o pedaço do Estado que é um dos seus tradicionais redutos eleitorais.


A distorção na definição e redefinição (conforme as variáveis demográficas do eleitorado) dos distritos será fatal. Nos Estados Unidos, um dos únicos quatro países importantes que adotam o sistema [os outros são o Canadá, o Reino Unido e a Índia], o rearranjo malandro dos distritos é rotina. Tem até nome: gerrymandering.


Mas passemos. Quais seriam as consequências do sistema para a representação política da sociedade?


Em primeiro lugar, as minorias e os partidos minoritários dançam. Porque o sistema distorce a relação entre votos e representação.


Imaginem um partido cujos candidatos sejam sempre os segundos mais votados mas nunca os mais votados em cada um dos 513 distritos para a eleição dos 513 deputados federais brasileiros. Esse partido, dono de uma votação expressiva, não elegeria nem um único parlamentar.


Um exemplo que entrou para a história foi o da eleição canadense de 1993. O partido que teve mais votos (16% do total) elegeu dois deputados. O partido que teve menos votos (7% do total) elegeu nove. O partido que ficou entre esses dois elegeu 54.


Perde-se em representação e em competição aberta entre os partidos. E se criam feudos eleitorais praticamente inamovíveis. Nos Estados Unidos, mais da metade das 439 cadeiras da Câmara são consideradas ‘não em disputa’ [undisputed seats], porque em cada uma delas, eleição depois de eleição, ganha sempre o mesmo candidato, enquanto vivo for.


Esses deputados e seus eleitores estão muito mais perto uns dos outros do que estariam no sistema proporcional [adotado no Brasil e na esmagadora maioria dos países]. Por isso, os eleitos acabam funcionando antes como vereadores federais dos seus redutos do que como porta-vozes de amplos setores da opinião pública nacional.


A sua reeleição depende fortemente do número e da importância das emendas ao Orçamento da União que conseguiram aprovar em benefício de suas clientelas.


Por falar em Estados Unidos com o seu voto distrital de nascença, todos os termos usados pelos especialistas para designar espertezas e maracutaias políticas são made in USA. Foram inventados pelos americanos para dar nome a práticas que, embora também existindo em outros países, ali surgiram ou se tornaram inseparáveis das decisões de governo.


Mas aqui não se fala em reforma política e em voto distrital para fortalecer o sistema partidário? Pois o sistema distrital, por excelência, é aquele em que o eleitor escolhe entre pessoas, e não entre pessoas e também partidos.


O sistema distrital, por outro lado, agrega maiorias parlamentares, que serão tanto mais majoritárias quanto menor o número de partidos sobreviventes. Dois nos Estados Unidos, três na Grã-Bretanha, por exemplo. Faz aumentar a governabilidade, em prejuízo da representatividade.


Aparentemente é mais eficaz, certamente é menos democrático e, a julgar pela experiência internacional, a começar dos Estados Unidos, tão sujeito à corrupção quanto o sistema proporcional.’


O texto citado teve por título ‘ A poção mágica do voto distrital’. Pode ser re(lido) em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.asp?
id={FF518B06-4F72-4FC9-945B-3B12186CFEF1}&id_blog=3


P.S. Da série ‘Quando não é uma coisa, é outra’


Pode parecer implicância, mas não é. Dos grandes jornais, o Estado é o que erra sistematicamente ao escrever ‘Universidade de Harvard’, como se Harvard fosse um lugar, e não ‘Universidade Harvard’, porque se trata de um nome próprio, como Mackenzie, em São Paulo, ou Gama Filho, no Rio.


Hoje, a propósito da ida do ex-governador Geraldo Alckmin para Harvard, o jornal não escreve ‘de’. Em compensação, diz que Harvard fica em Boston. Fica em Cambridge. Perto, mas é outra cidade.


***


Os comentários serão selecionados para publicação. Serão desconsideradas as mensagens ofensivas, anônimas, que contenham termos de baixo calão, incitem à violência e aquelas cujos autores não possam ser contatados por terem fornecido e-mails falsos.