Nenhum dos grandes jornais deu tão bem como a Folha o voto “antólogico” do ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação contra as pesquisas com células-tronco, que o Supremo Tribunal Federal começou a julgar ontem.
Além de articular as principais passagens do parecer de 50 páginas do ministro – a favor das pesquisas – a repórter Laura Capriglione ressaltou a reação de “feministas presentes no plenário do STF”.
Segundo uma delas, “se a Constituição não garante a inviolabilidade da vida ‘desde a concepção’ – a essência da argumentação de Britto – , pode-se discutir a legalização do aborto e mesmo aprová-la na legislação ordinária”.
A ação foi ajuizada pelo então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, dois meses depois da promulgação da Lei de Biossegurança, em 2005. A lei autoriza – sob severas condições – as pesquisas com células-tronco. [Leia, neste blog, a nota “A vida e suas implicações”.]
No entender de Britto, a ação não procede porque os embriões descartados ou congelados em clinicas de fertilização, dos quais os cientistas extraem as células-tronco, não são vida humana, com os direitos que a Constituição lhe assegura.
Algumas das mais sugestivas passagens da manifestação do ministro:
“…vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte.”
“Quando fala da ‘dignidade da pessoa humana’ [a Constituição] está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Gente. Alguém.”
“Tanto é assim que ela mesma, Constituição, faz expresso uso do adjetivo “residentes” no País (não em útero materno e menos ainda em tubo de ensaio ou em “placa de Petri”.
“…as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Esta não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose.”
“Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana…”.
“Deus fecunda a madrugada para o parto diário do sol, mas nem a madrugada é o sol, nem o sol é a madrugada”.
“…se toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana. Situação em que também deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino.”
“O que autoriza a lei é um procedimento externa-corporis: pinçar de embrião ou embriões humanos, obtidos artificialmente e acondicionados in vitro, células que, presumivelmente dotadas de potência máxima para se diferenciar em outras células e até produzir cópias idênticas a si mesmas (fenômeno da ‘auto-replicação’), poderiam experimentar com o tempo o risco de u’a mutação redutora dessa capacidade ímpar. Com o que transitariam do não-aproveitamento reprodutivo para a sua relativa descaracterização como tecido potipotente e daí para o descarte puro e simples como dejeto clínico ou hospitalar.”
“…se é legítimo o apelo do casal a processos de assistida procriação humana in vitro, fica ele obrigado ao aproveitamento reprodutivo de todos os óvulos eventualmente fecundados? Mais claramente falando: o recurso a processos de fertilização artificial implica o dever da tentativa de nidação no corpo da mulher produtora dos óvulos afinal fecundados? Todos eles? Mesmo que sejam 5, 6, 10?”
“…se todo casal tem o direito de procriar; se esse direito pode passar por sucessivos testes de fecundação in vitro; se é da contingência do cultivo ou testes in vitro a produção de embriões em número superior à disposição do casal para aproveitá-los procriativamente; se não existe, enfim, o dever legal do casal quanto a esse cabal aproveitamento genético, então as alternativas que restavam à Lei de Biossegurança eram somente estas: a primeira, condenar os embriões à perpetuidade da pena de prisão em congelados tubos de ensaio; a segunda, deixar que os estabelecimentos médicos de procriação assistida prosseguissem em sua faina de jogar no lixo tudo quanto fosse embrião não-requestado para o fim de procriação humana; a terceira opção estaria, exatamente, na autorização que fez o art. 5º da Lei. Mas uma autorização que se fez debaixo de judiciosos parâmetros…”.
“…o embrião ali referido não é jamais uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova. Faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem em formação. Pessoa humana, por conseqüência, não existe nem mesmo como potencialidade. Pelo que não se pode sequer cogitar da distinção aristotélica entre ato e potência, porque, se o embrião in vitro é algo valioso por si mesmo, se permanecer assim inescapavelmente confinado é algo que jamais será alguém.”
“…vida humana já rematadamente adornada com o atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral.”