Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ‘República perdida’ deles – e a nossa

Este foi o ano em que a expressão “valores republicanos” só perdeu para “mensalão” e “caixa 2” no léxico político brasileiro.

Mas hoje, Dia da República, nem a data, nem os valores que lhe são comumente associados – separação entre o público e o privado, e entre Igreja e Estado, impessoalidade nas decisões de governo e na gestão da coisa pública, independência das instituições, respeito ao primado da Constituição, igualdade de direitos e oportunidades para todos… – encontraram espaço na mídia [a julgar pelos três principais jornais do país].

Com duas exceções, ambas na Folha. O colunista Janio de Freitas, lembrando que o fim do regime monárquico no Brasil resultou de um golpe de Estado, o primeiro de uma “série prolífica” de intervenções militares na vida política nacional.

E o filósofo Roberto Mangabeira Unger, da Universidade Harvard, que escreve às terças no jornal, invocando as “instituições republicanas”, o “regime republicano”, o “futuro da República” e até “as comemorações da proclamação da República” para exigir o impeachment do presidente Lula.

Perto da violência do artigo “Pôr fim ao governo Lula”, do ex-guru do ministro Ciro Gomes e auto-declarado presidenciável, as diatribes do tucano Artur Virgílio, líder do PSDB no Senado, parecem cafuné na cabeça do presidente.

O professor faz lembrar as verrinas de Carlos Lacerda contra Getúlio Vargas, em 1954, e João Goulart, em 1963/4.

No sexto dos dez “Afirmo” com que Mangabeira inicia cada parágrafo de seu texto, se lê, por exemplo: “Afirmo que o presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo brasileiro lhe confiou.”

A fúria de Mangabeira não visa apenas Lula:

“Afirmo”, escreve ele logo em seguida, “que a oposição praticada pelo PSDB é impostura. Acumpliciados nos mesmos crimes e aderentes ao mesmo projeto, o PT e o PSDB são hoje as duas cabeças do mesmo monstro que sufoca o Brasil. As duas cabeças precisam ser esmagadas juntas”.

Tem quem ache que Mangabeira, filósofo do direito cujas obras são estudadas no exterior, é doido de pedra fora da academia. Mas nunca ninguém o viu rasgando nota de mil, como se dizia quando isso existia. Seja como for, que o julguem os seus leitores.

Meu ponto é outro. Que acabrunhante é esta República em cujo aniversário o texto mais incisivo na mídia foi escrito para pedir a cabeça do presidente.

É acabrunhante em qualquer hipótese. Se Lula for o que dele diz Mangabeira e se Lula não for. No primeiro caso, porque lá se terá ido mais uma esperança, numa história que não é propriamente pródiga em vê-las darem certo. No segundo, porque indicaria até que ponto terão chegado seus adversários.

Em suma, mais uma vez, alguém – o presidente, ou os seus detratores – está fulminando os valores republicanos no Brasil.

O que me lembra um dos melhores e mais arrasadores documentários políticos já feitos, pelo menos deste lado do equador. Trata-se de “La Republica perdida”, de 1983, dirigido pelo argentino Miguel Pérez. O filme reconstitui a história do país no século 20. Toma como pontos de referência o golpe de 1930, que pôs fim ao ciclo de governos civis reformistas inciado em 1916, e a medonha ditadura militar de 1976 a 1982.

”La Republica perdida” termina com a campanha à presidência do radical (da mesma União Cívica Radical dos reformistas dos anos 1920) Raúl Alfonsín, cuja vitória, fincando a redemocratização, mais uma vez encheu a Argentina de esperanças. O seu governo acabou meio ano antes do prazo constitucional. O seu sucessor foi Carlos Saúl Menem.

E a nossa República, por onde andará?

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