Não é comum no Brasil um artigo de um intelectual, na grande imprensa, provocar impacto comparável ao do ‘Razão e sensibilidade’, do professor de filosofia Renato Janine Ribeiro, publicado domingo na Folha, aqui transcrito e brevemente comentado nesse mesmo dia na nota ‘Em pleno Carnaval, vida inteligente na mídia’.
Tampouco é de espantar a repercussão. Não é toda hora que um acadêmico escreve, a propósito de um horror como o da morte do menino João Hélio, que só não defende a pena de morte para os assassinos porque acha que ‘é pouco”. E ainda: “Imagino [para eles] suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte.’
Como era de prever, as reações se dividiram. Das oito cartas a respeito que a Folha publicou, de segunda a hoje – e, felizmente, dando a cada uma espaço maior do que o habitual na seção Painel do Leitor –, quatro aplaudiram e quatro condenaram o professor.
Neste Verbo Solto, dos 15 comentários à nota de domingo, recebidos até o momento em que escrevo, três se referem especificamente ao texto de Janine: dois a favor, um contra.
O artigo também foi citado, hoje, em outro blog deste Observatório da Imprensa – Em cima da mídia, de Mauro Malin.
A resposta mais forte ao professor – que, por sua vez, foi objeto de uma das cartas sobre o assunto, na Folha – saiu anteontem no mesmo jornal. Confesso que me escapou porque não li o caderno Dinheiro, em que foi publicado, em plena Terça Gorda. Minhas desculpas.
Chama-se ‘Convite à filosofia da morte’ e o seu autor é o colunista econômico Vinicius Torres Freire. [Transcrição no final desta nota.]
Disse que era a resposta ‘mais forte’ menos pela contundência da sua crítica a Janine do que pela força da sua argumentação.
Esse é um sinal inconfundível para se falar em vida inteligente na mídia. Mas sinais desse tipo também levantam um problema sobre a vida inteligente no universo dos leitores.
Muitas vezes, diante de um texto opinativo na imprensa, infelizmente a tendência do leitor é aprová-lo ou reprová-lo pelas posições que defende: artigos com raciocínios capengas são aplaudidos porque se concorda com a tese do autor – e o resto pouco importa – assim como artigos consistentes são vaiados porque se discorda da tese do autor, pouco importando o vigor de suas idéias.
O prejuízo que isso causa à qualidade do debate público em toda parte não pode ser subestimado.
Se serve de consolo, é parte da condição humana, algo com o qual todo cuidado é pouco. A propósito, hoje, também na Folha, o psicólogo Contardo Calligaris escreve na sua coluna semanal sobre o que chama ‘Raciocínios motivados’. Tem tudo a ver com o que está dito acima.
Ele relata um pesquisa na área de neurociência que comprova que ‘o sujeito procura ativa e seletivamente (embora de maneira inconsciente) dados que confirmem sua hipótese ou o seu preconceito iniciais. O prazer de ter razão prevalece sobre argumentos e informações, produzindo cegueiras.’
Explica Calligaris que ‘a gente pensa e escolhe não no interesse da verdade, mas para sentir-se bem’. E cita o autor da pesquisa, Drew Westen:
‘Freud descobriu esses processos há décadas, usando o termo ‘defesa’ para descrever os processos pelos quais as pessoas adaptam seus resultados cognitivos [os conhecimentos que julgam ter adquirido] de maneira a evitar sentimentos desagradáveis como angústia e culpa.’
Isto posto, ao artigo de Vinicius Torres Freire:
“Um intelectual que deseja a tortura demorada e a morte dolorosa de homicidas. Trata-se do filósofo Renato Janine Ribeiro, segundo conta ele próprio em artigo publicado no Mais!, na Folha do domingo de Carnaval. Até aí, tudo bem. Na noite escura da alma, todos os gatos são lobos pardos, diria San Juan de La Cruz se escrevesse horóscopos. Mas o que interessa não é o desfile de emoções de Janine, mas seu entrudo filosófico.
Janine meditou seu artigo ainda transtornado pela morte horrível do menino João Hélio. Essa emoção suscitou desejos de vingança e ‘colocou em xeque’ algumas de suas crenças, tais como a oposição à pena de morte e à tortura estatal.
Janine mesmo diz não saber se pleiteia a pena capital. Mas, para o filósofo, é ‘muito importante’ que, em certa medida, suas idéias sejam consoantes com seus sentimentos. É preciso ‘criticar os sentimentos pela razão e a razão pelos sentimentos’ que se apoderam de nós.
A não ser que Janine se considere um déspota do sentimentalismo esclarecido, ele deve admitir que, no debate público, outros cidadãos também teriam o direito de apresentar razões consoantes com desejos de vinganças odientas ou outro tipo qualquer de fúria. Isto é, Janine parece adepto de algum tipo de irracionalismo subjetivista.
Sabemos, porém, que as razões expostas no debate público são de qualquer modo conformadas por pulsões variadas e pelo interesse particular: econômico, estamental, corporativo etc. Mas Janine quer dar ao ódio status semelhante. Quer deduzir políticas públicas de seu horror, do seu turbilhão emocional vingativo. Trata-se de um idealista da pá virada, que deduz regras da boa Justiça a partir da sopa moral-emocional de sua alma.
Isto é, Janine não leva em consideração nenhum elemento da realidade que influencia crime e castigo: cultura, economia, psicologia, processualística, polícia, estrutura judicial, criminalística, nada.
Há argumentos para defender ou refutar a pena de morte? Em termos morais, sem ‘parti pris’ político? Difícil. A pena capital é objeto daquelas discussões em que se confrontam princípios abstratos irreconciliáveis, como em debates sobre aborto, eutanásia, direito de se drogar ou de portar armas.
O problema-chave aí não é a irredutibilidade dos argumentos a um ponto comum, ao consenso, ou a impossibilidade de evidenciar razões e desrazões. O problema é a incompatibilidade total dos princípios abstratos em confronto, como as opiniões sobre liberdade individual ou direito à vida.
Mas, se os princípios deixam de ser abstratos, se argumentos se traduzem em formas de pensar a sociedade e se as razões têm conteúdo real, tais princípios passam a expressar preferências políticas.
Um exemplo: dizer apenas que a pena capital ofende o direito à vida é pregar um princípio abstrato. Diferente é dizer que a condenação à morte torna irreversíveis os erros dos tribunais. Que tal pena é influenciada por fatores como classe, raça, contexto social etc. Que a pena capital legitima e institucionaliza a idéia de que a morte pode ser uma boa coisa, assim como a vingança cruenta. Que, se um cidadão quer uma sociedade menos injusta e violenta, não deveria aceitar a pena capital, dados tais argumentos.
Tal debate também pode levar a conflitos insolúveis. Mas as partes em disputa terão de explicitar qual tipo de sociedade preferem e tendem a criar, dados os efeitos práticos de seus princípios.
Janine não ofereceu razões para a pena de morte. Propagandeou a idéia de que a desordem furiosa das razões deve ter lugar no debate público. Deu a entender assim que tipo de sociedade prefere.’
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