Nas três semanas do jejum do bispo D. Luiz Flávio Cappio, contam-se nos dedos os textos que saíram nos grandes jornais trocando em miúdos a polêmica da transposição das águas do Rio São Francisco.
O que mais se aproximou disso, em relação a um dos seus aspectos essenciais, talvez tenha sido uma matéria do Globo de ontem com dois especialistas no assunto [ver abaixo].
Em compensação, chegada como sempre ao espetáculo, a mídia se regalou com o protagonismo da atriz Letícia Sabatella. Hoje, está na Folha, no Globo, no Estado, e por aí, a foto da moça ao celular, chorando ao saber da decisão do Supremo Tribunal que liberou as obras.
Ela acha que a decisão foi “humilhante”. Direito dela. O problema é a transposição de suas emoções no noticiário. “Compreender”, dizia uma canção de protesto italiana dos idos de 1970, “custa mais”. Ou, no caso, explicar.
A influência do tratamento teatral dos problemas da esfera pública na formação das opiniões e mentalidades é velha conhecida da sociologia da comunicação.
É o que explica, para ficar no assunto do dia, a forma como o ex-ministro, deputado e presidenciável Ciro Gomes encontrou para reafirmar, em artigo no Globo de hoje, as suas posições pró-transposição: uma “Carta a Letícia Sabatella”, tão pessoal que inclui o aviso de que “Patrícia tem meus telefones” e termina com “um beijo fraterno”.
O político, que não nasceu ontem, sabe por que a famosa expressão americana sobre a conquista da opinião pública é “corações e mentes” e não “mentes e corações”.
Aos leitores que preferem argumentos a arroubos, eis a materiola do Globo a que me referi:
‘Idéia surgida no Brasil ainda no tempo do Império, a transposição do Rio São Francisco nunca deixou de dividir opiniões. Mas um ponto de discórdia já está sanado, garante o coordenador do Laboratório de Hidrologia da Coppe-UFRJ, Paulo Canedo: a transposição não causará impacto ao São Francisco.
– Está comprovado que não vai causar danos ao São Francisco. Isso é coisa de quem romantiza a natureza.
O São Francisco é um rio firme, que nasce no Sudeste, que tem a previsibilidade (de chuvas) do Sudeste, navega pelo semi-árido mais ou menos seguro. Com os 26 metros cúbicos por segundo, como está previsto, dá para operar os reservatórios com segurança. E o São Francisco sequer saberá. Nem se 180 milhões de brasileiros ficarem olhando, ninguém perceberá. Nem que tenha instrumento medindo. É imperceptível.
Para Canedo, o São Francisco pode dar a água de que o semi-árido precisa. Mas a região precisa de mais – de outras políticas públicas.
– Para desenvolver o semi-árido, precisamos de emprego e renda, como em qualquer outra região. Mas, fazendo a coisa inteligente, vai ter coisa plantada. As coisas podem começar a acontecer.
Já o professor Rubem La Laina Porto, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), uma das principais autoridades sobre engenharia hidráulica e sanitária no Brasil, afirma que a discussão sobre o problema da distribuição de água nas regiões secas do Nordeste deve começar “passando uma borracha” em tudo que já se falou sobre o assunto:
– É preciso esquecer tudo e começar a discutir do zero com outro tipo de planejamento. Se o problema é falta de água, temos que ver como resolver. Somos imaturos politicamente para chegar a uma solução.
La Laina Porto observa que o governo quer executar o projeto sem entendimento prévio com os estados envolvidos, o Senado ou a Câmara. Segundo ele, entre 2000 e 2001 o Banco Mundial levou um grupo de políticos aos Estados Unidos para que conhecessem projetos semelhantes.
– Como se percebe hoje, eles não entenderam nada.‘