Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A violência na classe média, item diário da agenda da imprensa

O caso do porteiro esquartejado em São Paulo parece ser o candidato fácil ao título de crime monopolizador das atenções de jornais e telejornais da primeira semana de junho, seguindo fielmente a tristemente célebre regra do “se sangrar vira manchete” (adaptação da frase inglesa “if it bleeds, it leads”). Nem mesmo o frenesi pré-Copa foi capaz de tirar das primeiras páginas o crime protagonizado por um publicitário paulista.

Este é apenas o mais recente de uma série de assassinatos que ganharam projeção nacional graças à preocupação da imprensa em explorar delitos que envolvem famílias da classe média. Os crimes na classe C e D não despertam mais a mesa curiosidade dada a sua monótona frequência e motivos quase sempre ligados à precária situação econômica das vítimas e criminosos.

Antes do caso do porteiro morto por um morador do prédio onde trabalhava, assistimos durante mais de uma semana aos detalhes sórdidos do assassinato do menino Bernardo, de 8 anos, no Rio Grande do Sul. Retrocedendo mais no tempo encontraremos uma lista consistente de crimes em família, fato que leva a uma perturbadora dúvida: está aumentando a frequência de assassinatos na classe média brasileira, ou é a imprensa que está exagerando depois de descobrir um novo filão para atrair a atenção do público?

As estatísticas policiais podem oferecer elementos para atestar a veracidade ou não da primeira parte da pergunta, mas a observação crítica da imprensa mostra que a segunda parte é, pelo menos, parcialmente verdadeira. É óbvio que os jornais e telejornais não são os responsáveis pelos delitos cometidos entre pessoas da classe média, mas o fato de terem transformado dramas intrafamiliares em item de agenda noticiosa pode facilmente ser associado a uma preocupação com o faturamento.

A monotonia da cobertura jornalística sobre corrupção pública e privada, a crescente impopularidade e desinteresse pelo noticiário político, a sucessão de manifestações de protesto e o registro impotente dos assaltos, roubos e sequestros levaram a imprensa a buscar novos temas para reconquistar o interesse de um público cada vez mais viciado em redes sociais e no voyeurismo virtual.

A classe média urbana, antes protegida por uma cumplicidade da imprensa em relação aos seus conflitos domésticos, passou agora a principal protagonista de reportagens investigativas nas quais o voyeurismo e a solidariedade passional são os principais ingredientes da nova receita jornalística. Os segredos da vida privada tornam-se públicos e tema de intermináveis debates na imprensa sempre que coincidam com tragédias impactantes.

Por outro lado, em especial na TV, há um discreto incentivo à manifestação da ira comunitária e à cobrança de justiça a qualquer custo. Como jornais, revistas e televisão deixam de lado a investigação jornalística para privilegiar informações dadas por policiais, advogados, especialistas e magistrados, acabamos perdidos num mar de jargões, opiniões disfarçadas de verdades, silêncios cúmplices e dados distorcidos. Resultado: não conseguimos entender o que aconteceu, ficamos a espera de respostas, até que um novo crime monopolize as manchetes e, consequentemente, a nossa atenção.

A exploração comercial da violência nas famílias de classe média mostra tanto o estado de nervos de um segmento da sociedade até agora relativamente imune ao sensacionalismo,, como também o fato de a imprensa não conseguir romper a dependência das vendas como fator dominante da determinação da agenda de reportagens. Todos os crimes famosos dos últimos meses não produziram resultados conclusivos e permanece uma névoa de dúvidas sobre suas causas, implicados e consequências.

A classe média é o segmento mais dinâmico no contexto social contemporâneo do país. Todas as transformações verificadas desde que começou a política de distribuição de renda geram questões de enorme interesse público por conta das tensões e contradições que provocam. Mas a imprensa parece não ter se dado conta dos fenômenos sociais em curso e foca apenas no pior lado da ascensão da classe média, o seu descontrole emocional.

A mídia não deve deixar de cobrir os crimes, mas precisa situar o seu trabalho investigativo e documental num contexto de busca de soluções coletivas. Não adianta execrar assassinos e nem muito menos destruir reputações, se isto é promovido às custas do passionalismo e da curiosidade mórbida. A prisão não é o único e nem o mais eficiente desestímulo à banalização da violência na classe média. Saber por que e como o dinheiro, a busca de status, a conquista do poder e a competição desenfreada contaminaram as relações sociais é também uma missão da imprensa, porque afinal ela existe para servir ao cidadão e à sociedade.