Por essas e outras é que costumo elogiar o noticiário político do jornal Valor Econômico. Guardadas as proporções, faz como o nova-iorquino Wall Street Journal, do mesmo ramo. Não se sentindo obrigado a gastar o melhor do seu espaço com o enfadonho ramerrame de um setor que não é a sua especialidade, tomou a inteligente decisão editorial de investir em reportagens políticas originais – em geral, aliás, bem apuradas e bem escritas.
É rigorosamente o caso da matéria que ocupa toda a última página do primeiro caderno do Valor de hoje. De autoria de Caio Junqueira, tem por título “Haddad cai nas graças de Lula e já incomoda” e trata das incursões do ministro da Educação, Fernando Haddad, pela cena movediça da política.
O homem, por sinal, não esconde o jogo. Embora negando que tenha a pretensão “fixada” [ótimo, esse “fixada] de concorrer a eleições, diz se ver “como alguém que se preparou e que tinha e tem a disposição de ocupar funções públicas dentro do contexto de um projeto político com o qual eu concorde”.
Se Haddad, segundo o Valor, já incomodava, imaginem agora, depois desse materião – cuja leitura recomendo, quanto mais não seja porque conta uma boa história.
Em tempo: e não se trata, nem de longe, daquele tipo de jornalismo “corajosamente a favor”, como gostava de dizer o profissional de primeira que era o gaúcho Jorge Dias Escosteguy das matérias que só na aparência tratam os seus personagens com isenção, porque na realidade tinham o propósito de inchar a bola deles.
Lá vai, então:
No quente e lotado auditório da Universidade do Estado do Amazonas, dezenas de professoras o aguardam com suas máquinas fotográficas em punho, ao lado da maioria dos prefeitos amazonenses. Ao fundo, uma meia dúzia de pessoas ergue cartolinas brancas e amarelas pedindo mais recursos para a assistência estudantil, livros escolares e um piso nacional para os professores. Do alto da ampla mesa – próximo ao governador Eduardo Braga (PMDB) e seu secretariado -, o ministro da Educação, Fernando Haddad (PT), alvo das atenções da platéia, responde a cada uma das demandas dos manifestantes antes de iniciar seu discurso: ‘Vou ver o que aconteceu com os livros. Qualquer coisa venho a nado trazer. Continuem a luta de vocês’.
Primeiro ocupante da pasta a visitar em décadas locais como o Estado do Amapá e a Ilha de Marajó, Haddad será, no fim de 2007, o integrante do alto escalão do governo federal que mais terá rodado o país. A previsão é de que todos os 26 Estados da União sejam percorridos para o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), cuja principal meta é que os alunos brasileiros atinjam a nota média 6 até 2022, saindo dos parcos 3,5 atuais. De maio até este mês, ele terá completado toda a região Norte e Nordeste. A partir daí, fará Centro-Sul, Sudeste e Sul.
Nesse circuito, tem exibido um perfil de paciente negociador. Em São Luís (MA), por exemplo, manifestantes interromperam seu discurso sob pedidos de que pudessem ler uma carta na qual denunciavam o caos no sistema educacional do Estado. O ministro se comprometeu a ouvir a carta, desde que deixassem-no terminar o discurso. Feito o trato e finda sua fala, dirigiu-se aos manifestantes, ouviu a leitura e prometeu enviar uma equipe do Ministério da Educação (MEC) para auxiliar nas negociações com o governo maranhense. Cuidou também de não envolver sua pasta no projeto das fundações estatais, capitaneado pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que prometer ser o centro de polêmicas acirradas com o funcionalismo público.
Nos lugares por que passa, a agenda se assemelha à de um candidato a presidente. Encontros com prefeitos, almoços com empresários, jantares com governadores, reuniões com jornalistas e a tietagem de professoras, que em alguns lugares se aglomeram ao redor de seu carro.
Aos 44 anos, esse paulistano da Vila Mariana, zona sul da capital, fã na música dos Beatles e do jazzista Thelonious Monk, e no cinema de Stanley Kubrick e Francis Ford Coppola, tem ampliado seus contatos para além do meio político-administrativo e ganhado terreno no setor empresarial. Quando ainda era secretário-executivo do MEC, encontrou-se com Jorge Gerdau Johannpeter e Emilio Odebrecht para pedir apoio a projetos de melhorias na educação. Do encontro nasceu o Compromisso Todos Pela Educação, que reúne boa parte do PIB nacional em projetos conjuntos com o ministério que chefia.
Logo caiu nas graças do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem ganhou apoio definitivo após apresentar um esboço do Plano de Educação entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2006. Antes, a admiração do presidente crescia principalmente pela autoria de dois dos relevantes projetos deste governo: o Prouni e as Parcerias Público-Privadas (PPPs). Hoje, Haddad virou, além de ministro, uma espécie de consultor econômico do presidente.
A intimidade com Lula começou a criar especulações sobre uma eventual candidatura à Prefeitura de São Paulo em 2008. E, por conseqüência, reações indignadas do grupo que controla o PT paulistano, ligado à ministra do Turismo, Marta Suplicy. A bronca vem desde sua nomeação, e não de Marta, para o MEC. ‘Não é verdade que Lula defenda o nome dele. E, se defendesse, a legenda do PT não está disponível. O ministro pode até ser candidato, mas só se for por outro partido’, afirma um dos martistas. Quando a especulação passa à possibilidade de Haddad suceder ao próprio Lula em 2010, a hipótese é colocada pelos ‘martistas’ como ‘delírio’.
No trânsito entre Manaus e Brasília, a bordo de um jato C-99 da Força Aérea Brasileira, Haddad descarta a possibilidade de seu nome para 2008: ‘Três meses depois do lançamento do PDE, essa cogitação me soa estranha porque estamos no início do processo de consolidação e execução de um plano muito ambicioso para a educação brasileira. Não consigo ver essa possibilidade como viável’. Sobre projetos eleitorais futuros, ele diz: ‘isso não faz parte das minhas considerações atuais’.
Embora hoje os martistas, segundo dizem, tenham-no ‘no estômago’, foi na gestão Marta que o ministro ocupou seu primeiro cargo público, como chefe de gabinete do então secretário de Finanças, João Sayad – atual secretário de Cultura do governo José Serra (PSDB). Ali já ocorreram alguns atritos entre ambos e o staff do gabinete. Em certa ocasião, Haddad, tenso, não concordou com uma ordem da então prefeita e solicitou a ela, via assessoria, que lhe passasse um fax assinado com a solicitação.
A ligação de Haddad com Sayad nasceu depois da leitura feita por este da tese de doutorado em filosofia do ministro, defendida na USP em 1996, intitulada ‘De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado’. Os contatos se estreitaram e culminaram com o convite para trabalharem juntos. Nesta época também aproximou-se de José Serra, que hoje mantém o que no Palácio dos Bandeirantes é considerado como uma ‘ótima’ relação com o ministro.
Da parceria Haddad-Sayad surgiu, de acordo com ambos, a proposta dos Centro Educacionais Unificados (CEUs). Resgatando a idéia de escolas-parque proposta pelo educador baiano Anísio Teixeira (1900-1971), a proposta veio durante um sobrevôo por São Paulo onde se detectaram grandes manchas com ausência do Estado na periferia. Haddad encomendou um projeto semelhante a um amigo arquiteto, mas, depois de saber da existência de algo parecido feito pelo arquiteto Alexandre Delijaikov na gestão Celso Pitta (1997-2000), que estava engavetado, apresentou-o à prefeita. A versão, porém, é contestada pela secretária de Educação de Marta à época, Cida Perez: ‘A prefeita concretizou um projeto que o PT discutia há muito tempo. Não é de um ou de outro a idéia. Ela fez todas as escolhas. Ele devia é reivindicar a paternidade da taxa do lixo. Isso sim foi idéia dele.’ Outros integrantes do grupo estendem as críticas, dizendo que o ministro é alguém ‘de esquerda demais nas idéias, tucano demais nas ações’.
A política de boa vizinhança que exerce faz com que evite declarações que acirrem eventuais debates dentro do partido e fora dele. O ministro rejeita, por exemplo, fazer em público uma análise dos oito anos do governo FHC, algo que qualquer petista faz com grande desenvoltura. Entretanto, em artigos publicados na segunda metade dos anos 90, Haddad escreveu que tucanos e pefelistas cederam ao patrimonialismo típico do Estado brasileiro, que atingiu ‘seu apogeu com o atual modelo de privatizações’. Questionado sobre essas impressões, o ministro lembra que também escreveu sobre os riscos de que a chegada da esquerda ao poder central também a fizesse sucumbir ao patrimonialismo. E analisa: ‘A superação desse problema não é obra de um partido, mas de uma geração. Não estou acusando A, B, ou C, personalizando a questão. É um problema estrutural do Estado brasileiro. A ilusão que se pode ter tido é de que, chegando a esquerda ao poder, a lógica patrimonialista seria aniquilada’, diz.
A constante tensão na prefeitura aliada à vitória de Lula em 2002 propiciou ao ministro a consolidação de um desejo que mantinha desde a faculdade de Direito: integrar a administração federal. O convite veio em meados de 2003 pelo então ministro do Planejamento, Guido Mantega, seu conhecido desde o tempo em que compunha a equipe econômica do Instituto Cidadania, órgão petista de formulação de políticas públicas. Na assessoria econômica a Mantega, formulou as PPPs. Foi o primeiro cargo de Haddad em Brasília, para onde se mudou com sua mulher, Ana Estela Haddad, doutora em Ciências Odontológicas pela USP, que passou a ocupar o cargo de diretora de Gestão da Educação na Saúde no Ministério da Saúde. Casados há 19 anos, têm dois filhos: Carolina, de 14 anos, e Frederico, de 7.
A ausência de vínculos com a estrutura partidária é apontada como a principal lacuna de Haddad, e, talvez, seu principal obstáculo caso queira alçar vôos eleitorais. Não obstante tenha a simpatia e apoio do presidente, não há um grupo político capaz de mobilizar seu nome dentro do PT. Essa característica, porém, nunca foi algo com que tenha se preocupado ao longo da trajetória, na qual desenvolveu intimidade apenas com a intelectualidade petista.
A ligação com a comunidade acadêmica vem de uma longa trajetória na USP, onde se graduou em Direito em 1985 e, cinco anos depois, defendeu sua tese de mestrado na Faculdade de Economia: ‘O caráter sócio-econômico do sistema soviético’. Os autores brasileiros que formaram seu pensamento, segundo o próprio Haddad, vêm de três frentes. ‘Uma, que vai do Celso Furtado, passa pelo Fernando Henrique Cardoso, e chega ao José Luis Fiori, e passa pelo desenvolvimento, pelo papel do país no Conselho das Nações, e pela formação econômica do país. Outra vai do Caio Prado Jr., do Luiz Felipe de Alencastro, passando pelo Fernando Novaes. E uma terceira começa com Antonio Candido e chega ao Roberto Schwarz e Paulo Arantes, que influenciaram minha maneira de pensar o Brasil. Mas há uma quarta, que foi muito desconsiderada pela esquerda brasileira, mas que me chama muita a atenção, que é a produção do Raymundo Faoro, em que ele trata do caráter patrimonialista do Estado brasileiro.’
A intimidade demais nesse campo e de menos na estrutura interna do PT fez com que, embora seja filiado ao PT desde 1983, nunca tenha sequer votado em alguma eleição interna da legenda. Tampouco participou do Congresso do partido finalizado domingo. Sua manifestação mais recente sobre a legenda foi a assinatura do texto ‘Mensagem ao Partido’, liderada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, em que pede a recomposição de forças dentro do PT, com diminuição da influência do antigo Campo Majoritário. Ele justifica a assinatura como um desejo de oxigenação da legenda. ‘Tem a ver com uma vontade que muitos militantes têm de que o partido se oxigene, tenha uma abertura para a emergência de novas lideranças, de um novo pensamento, o que está cada vez mais difícil em todos os partidos, e o PT não foge à regra.’ O grupo que subscreve a Mensagem, porém, embora tenha relevância em âmbito nacional, é frágil na capital paulista: não alcançou 7% dos votos nas últimas eleições internas da sigla, o que inviabilizaria ainda mais uma tentativa de consolidação de seu nome para a Prefeitura de São Paulo.
Haddad também não tem intimidade com eleições. A única na qual, de fato se envolveu foi para o Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1984, com a chapa ‘The Pravda’, vitoriosa já na no ano anterior sob o comando do amigo íntimo Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás no primeiro mandato de Lula. O nome, uma junção dos principais jornais dos Estados Unidos (‘The New York Times’) e da então União Soviética (‘Pravda’), satirizava a Guerra Fria. Seu grupo defendia a formação de uma esquerda alternativa ao já decadente regime soviético. O Brasil vivia a ressaca das Diretas-Já e Haddad liderava passeatas contra a eleição de Tancredo Neves, sob o mote de ‘Tancredo Never’. Com a morte do presidente eleito, a luta passou a ser para evitar a posse do vice José Sarney, hoje importante aliado de Lula.
Para tocar a presidência do XI de Agosto, Haddad deixou de ajudar o pai, Khalil Haddad, no comércio de tecidos que este tinha na rua 25 de Março, tradicional reduto da comunidade de descendentes de libaneses paulistanos, da qual o ministro faz parte. Seu avô, Cury Habib Haddad, era um padre da Igreja Cristã Ortodoxa com grande influência sobre essa comunidade em São Paulo. À exceção dessa incursão familiar, em poucas outras oportunidades se dedicou a atividades privadas. Depois da graduação em Direito, teve uma pequena sala para atuar como advogado e também montou uma incorporadora com um engenheiro. Juntos, ergueram um prédio em Moema, zona sul de São Paulo. Nos anos 90, atuou por um curto período como analista de investimentos do Unibanco, e trabalhou na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), onde implementou a tabela da instituição para consulta de preços de veículos automotores.
Haddad custa a se definir como técnico ou político. ‘Não consigo me rotular. Dependendo de como se conceitua, não sou nenhum dos dois. Geralmente se atribui formação técnica a um especialista, o que não sou. E se você conceitua político como alguém que almeja concorrer a eleições ou tenha essa pretensão fixada, também não me enquadro. Vejo-me como alguém que se preparou, e que tinha e tem a disposição de ocupar funções públicas dentro do contexto de um projeto político com o qual eu concorde.’
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