Os assinantes do O Estado de S.Paulo que dependeram do site para se informar, perderam hoje boas reportagens da versão impressa do domingo. Entre elas, um conteúdo secundário da matéria ‘Camadas Pobres sustentam Lula’, que traz análise de especialistas sobre a última pesquisa CNI/Ibope, de avaliação do governo Lula, é fonte de inspiração para novas pautas.
O texto principal, assinado do veterano repórter e historiador Carlos Marchi*, privilegia o aspecto político dos resultados da pesquisa. EEs viés explica o foco daquilo que tem a dizer por meio das avaliações de três especialistas – Márcia Cavallari, diretora do Ibope; e os cientistas políticos Gustavo Venturi e Antonio Lavareda, ambos representando consultorias. Marchi explica que, apesar da limadura imposta em quatro meses de crise, a avaliação de Lula nas pesquisas não despencou graças ao apoio que recebe dos ‘mais generosos’ da ‘base da pirâmide social’.
Ao equilíbrio da manutenção da imagem – Lula manteve 45% de aprovação nos dois últimos meses – os especialistas ouvidos pela reportagem atribuem dois fatores: ‘os benefícios que recebem dos programas sociais do governo e o pouco acesso à informação’.
O corte da reportagem nos indicadores da pesquisa recai sobre a avaliação de Lula e o nível de escolaridade dos entrevistados. Quanto maior o tempo de estudo, maior também é a rejeição a Lula, conforme procuram mostrar os cinco gráficos do quadro ‘Avaliação conforme escolaridade’. A propósito, as ilustrações que apontam o cruzamento dos dados de escolaridade e avaliação são um exemplo de deformidade matemática. Elas contrariam na íntegra o que Leonardo da Vinci legou à humanidade, há cinco séculos, sobre a ciência da perspectiva.
A distribuição desenhada dos percentuais, que não resiste ao mais rudimentar exercício matemático, é detalhe que não escapa em países de imprensa mais desenvolvida, havendo, inclusive, explicações sobre a escala empregada na distribuição dos números ou percentuais.
O conteúdo secundário citado no início que é fonte para pautas está na reportagem de apoio ‘A base social que não deixa órfão o presidente’, onde se detalham números do programa Bolsa-Família, motivo de reportagem da revista britânica The Economist e de inserção nesse blog que rendeu alguma polêmica entre os leitores-contribuintes.
O texto aponta que o programa ‘cresce num galope vertiginoso’: 3,6 milhões de famílias atendidas em dezembro de 2003; 6,5 milhões no final do ano passado; e 7,5 milhões no mês passado, ‘o que equivale a aproximadamente 30 milhões de pessoas’, com projeção para atingir 8,7 milhões de famílias até o final deste ano. O dinheiro reservado para o Bolsa-Família também cresceu no mesmo ritmo: R$ 3,4 bilhões, em 2003; R$ 6,5 bilhões neste ano e a previsão de R$ 8,7 bilhões em 2006, ‘quando o governo pretende atingir os 11,2 milhões de famílias ditas pobres’. ‘Se der certo’, acrescenta, ‘serão 45 milhões de pessoas dependentes do programa,.entre 15% e 20% do eleitorado brasileiro’.
No último parágrafo, registra ainda que a maioria dos beneficiados está no Nordeste (3,7 milhões de famílias), seguida pela região Sudeste (2,8 milhões de famílias), Sul (828 mil). Norte (800 mil) e Centro-Oeste (358 mil).
O viés aplicado na análise reduz-se ao percentual de eleitores beneficiados – o que limita a apreciação do impacto do programa. As demais avaliações dependem de reportagens que procurem traduzir a realidade das pessoas e das regiões atendidas. Perguntas essenciais ainda esperam pela apuração dos repórteres:
Quantos municípios estão sendo atendidos pelo Bolsa-Família?
Como se deu a evolução geográfica dos municípios atendidos pelo programa desde sua implantação, em 2003?
Há diferenças entre a bolsa distribuída nas grandes e nas pequenas e médias cidades brasileiras? Quais são essas diferenças regionais e por que?
Quanto recebe um beneficiário do programa no município mais pobre do agreste nordestino e quanto recebe um de uma grande cidade do Sul? O que dá para comprar com o dinheiro recebido em cada uma das regiões?
Qual o perfil de renda e de Índice de Desenvolvimento Humano da maioria dos municípios em cada uma das regiões?
É possível medir o impacto da distribuição da bolsa nas economias locais? A influência da distribuição da bolsa nas economias locais é expressiva? Equivale à dos pagamentos das pensões e aposentadorias da Previdência Social? Qual setor – indústria, comércio ou serviços – mais se beneficia?
Um dos pontos discutidos no recente encontro da ONU que debateu a fome no mundo é a originalidade da exigência de cumprimento de obrigações mínimas por parte de quem recebe o benefício. Essa reciprocidade deixou de ser exigida no início governo Lula, com o Fome Zero. Com o fim do ministério da Segurança Alimentar e a substituição de José Graziano da Silva por Patrus Ananias, no novo Ministério do Desenvolvimento Social, a reciprocidade voltou a ser exigida. Que distorções a omissão inicial gerou? Como estão sendo monitorados e avaliados os outros objetivos do programa? Quais os indicadores que o governo tem para comprovar que a bolsa não tem apenas cunho assistencialista? Quais indicadores de melhora do Índice de Desenvolvimento Humano que o governo tem para apresentar, se é que os tem?
Com a reportagem em campo, essas questões essenciais serão respondidas, da mesma forma que outras surgirão do contato direto do jornalista com a realidade. Depende apenas de disposição.
Carlos Marchi é autor do livro ‘Fera de Macabu’, Editora Record, que conta a história de Manoel da Motta Coqueiro, último brasileiro condenado à forca, no final do século 19. Recomenda-se a leitura.