Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As lições de um manual de redação de jornal

Um manual de redação não é uma coisa que deva interessar apenas aos jornalistas. Afinal, ele é uma espécie de livro de receitas sobre como fazer uma notícia ou reportagem, e isso pode interessar tanto ao leitor quanto a informação sobre os ingredientes do pão nosso de cada dia.
 

É por isto que o manual de redação do jornal norte-americano Voice of San Diego, editado na cidade de San Diego (Califórnia) tem muita coisa a dizer para nós aqui no Brasil, em especial sobre o que podemos esperar de um jornal do futuro.
 

Para começar, o jornal existe há seis anos, é publicado apenas na internet, tem como foco as notícias locais de San Diego, é uma organização sem fins lucrativos e, no ano passado, foi escolhido como o melhor jornal local online dos Estados Unidos. Mas não é só isso que chama a atenção no Voice, além do fato de ele ter recebido nos últimos três anos mais prêmios sobre reportagens investigativas do que o USA Today, um dos quatro maiores jornais norte-americanos.
 

O manual de redação (comentado por Jay Rosen, professor de jornalismo da Universidade de Nova York – CUNY) estabelece as normas de conduta para os repórteres e colaboradores do jornal, com recomendações que contrariam tudo aquilo que é considerado norma nas redações tupiniquins. Vejam algumas delas:
 

a) Em cada reportagem há três itens obrigatórios: contextualização, conhecimento de causa e não se limitar a dizer o que está acontecendo, mas o qual o significado do que está sendo informado.

b) Não existe objetividade. Cada pessoa, inclusive os repórteres, vê a realidade através de filtros pessoais. Reconheça a diversidade de opiniões e deixe que ela oriente seu trabalho.

c) O manual afirma que os repórteres não são guiados por identidades politicas ou ideológicas, mas cada decisão que tomam é feita a partir de sua própria subjetividade.

d) Não existe equilibrio metade/metade. Existe a verdade e temos que fazer todo o possível para chegar até ela.

e) Na maioria dos casos não existem apenas dois lados do problema, existem muitos e todos merecem tratamento igual. Pergunte-se, sempre, quem não está sendo representado na noticia ou reportagem.

f) Não faça perguntas em sua reportagem. Dê respostas.

g) Evite sempre a fórmula, “fulano disse”, “ciclano declarou” . Nós não somos uma página de transcrições.

h) Se alguém o acusar de tendencioso, não se assuste, também não trate de negar. Pense no problema e responda com convicção.

i) Não disfarce as suas opiniões pessoais citando outras pessoas.

j) Siga esta regra: o jornalismo é bom para resolver pequenos problemas e para arranhar grandes questões. Ele nunca foi bom para solucionar grandes problemas.

k) Não se preocupe em ser furado. O que deve lhe preocupar é o fato de não estar gerando impacto com sua informação.

l) Não faça como o ratinho do carrossel: correr o tempo todo sem sair do lugar. Não adianta ter pressa só para atender a um deadline.

m) Evite o jargão jornalístico. Escreva uma história como se a estivesse contando para um amigo numa mesa de bar.

n) Nós não fazemos jornalismo por dinheiro. Nosso trabalho tem que ser prazeroso.
 

O Voice of San Diego é mantido por uma fundação da qual fazem parte alguns grandes empresários da cidade, que decidiram financiar uma publicação online depois que San Diego foi perdendo seus principais jornais impressos por conta da crise na midia convencional. Em 2005, houve um movimento de moradores reclamando contra a falta de notícias locais, o que garantiu uma enorme receptividade para a página que hoje já alcança os 10 milhões de acessos mensais.
 

O jornal tinha quatro profissionais pagos quando começou a funcionar. Hoje tem 14 e uma lista de aproximadamente 50 colaboradores frequentes. E, o mais importante de tudo, o número de doações por parte de moradores quadruplicou desde a primeira edição.
 

O modelo adotado pelo jornal californiano pode não ser uma receita para qualquer situação, mas não deixa de ser uma opção a ser estudada porque ele já tem algumas lições a serem aprendidas por leitores preocupados com a forma pela qual a nossa imprensa vem tratando a informação local e a participação do público na produção do noticiário.
 

O exemplo do Voice mostra como é possível achar alternativas numa realidade informativa em que o jornalismo está sendo levado a se tornar cada vez mais um projeto público e menos uma máquina privada para fazer dinheiro. Isto nos obriga a repensar os valores e rotinas atuais não só das redações, mas principalmente da forma como elas se relacionam com o cidadão comum.