Quando escrevi neste blog, semana passada, que o desafio da mídia é fazer você entender o que dizem os cientistas para crer que o aquecimento global é não só real, mas de fabricação humana, deixei para mais tarde – hoje, no caso – uma questão que complica enormemente esse desafio.
Trata-se do fato sabido de que a informação, base para a compreensão, não pode tudo. Ela é necessária e insuficiente. A toda hora, numa infinidade de situações, nós nos recusamos a crer até no que os olhos nos mostram.
Se existe uma palavra singular para isso em português, não me ocorre. Em inglês é denial: mais do que negar, significa não querer aceitar.
Denial é o que fazemos, na quase totalidade das vezes, assim que recebemos uma notícia ruim: quanto pior ela for, mais intensa será essa primeira reação. Todos já devemos ter passado pela experiência de dar uma notícia muito má a alguém e ouvir de bate-pronto: “Não é verdade, não pode ser verdade.” E todos, quando na outra ponta, já devemos ter dito ou pensado a mesma coisa.Para acreditar que estamos destruindo as bases materiais primárias da nossa sobrevivência, ao transformar radicalmente a biosfera que permitiu à espécie humana ocupar quase todo o planeta, submeter a natureza aos seus desejos e interesses – a ponto de já no século 19 se falar em “natureza humanizada” –, e se achar dona do mundo, é preciso muito, quase demais.
É preciso que dê certo o complicado processo mental e emocional que começa com a informação objetiva e certificada pela ciência, passa pelo seu entendimento – se a mídia o propiciar, qualquer que seja o nível geral de educação de uma sociedade – conduz à aceitação da realidade informada e compreendida, e desemboca na pergunta: “O que será que eu posso fazer para impedir os piores efeitos previsíveis dessa realidade?”
O problema de fundo é que nossas convicções podem ser ou nos parecer racionais, baseadas na capacidade de apreender os fatos e lhes dar sentido, mas quando as defendemos lançamos mão não apenas do intelecto, mas dos sentimentos.
Mesmo os cientistas, pessoas profissionalmente treinadas para renegar as suas convicções quando postas em xeque-mate por fatos novos ou por uma nova e mais correta maneira de ver os fatos conhecidos, exibem graus variados de resistência a ceder. Que dirá o resto de nós.
Isso porque tudo é quase sempre pessoal. Um ataque às certezas, ou às ações de cada um, tende a ser recebido de imediato como um ataque à própria pessoa ou aos grupos de afinidade com os quais se compartilham uma coisa e outra. Atacada, a pessoa tende a reagir. Desqualificar o atacante para desqualificar o ataque é velho como a vida em coletividade.
E existem os muitos – até entre aqueles em posição de decidir, na mídia, o que o público precisa saber e achar – que são movidos a arrogância: estes negam as evidências que tiveram o desplante de contrariar as suas soberbas certezas e preconceitos indissociáveis da própria auto-estima. Fora com esses fatos!
Ora, quando os melhores cientistas do clima – uma legião de 2.500 experts de 130 países – gastam três anos passando em revista centenas de trabalhos científicos sobre o aquecimento global, para dizer que o nosso modo predatório de produzir e consumir é literalmente catastrófico, muitos haverão de se sentir pessoalmente atingidos.
E ameaçados também, não pelas consequências de seus padrões de uso de energia e relação com o ambiente – o que seria justo, lógico e racional –, mas pela perspectiva de terem de reciclar comportamentos, expectativas, crenças e valores – o que é o supra-sumo da ironia.
Para não ter que aceitar o inaceitável, mas verdadeiro, ou eles inventarão uma teoria conspiratória qualquer para desqualificar o diagnóstico e os abrumadores prognósticos dele decorrentes, ou darão uma de avestruz, enfiando a cabeça na areia, na base do não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.
O pior é que a recusa, não bastasse toda a carga emocional e de auto-defesa de que se nutre, encontra aliados com a maior facilidade em ideologias, ou nas máquinas de fazer doidos, como dizia o inesquecível Stanislaw Ponte Preta, a serviço de poderosíssimos interesses econômicos, políticos e estratégicos.
Já li e já ouvi: o aquecimento global é uma invenção, ou um pretexto, do mundo rico para impedir o desenvolvimento do mundo pobre; o aquecimento global é uma invenção, ou um pretexto, da esquerda mundial para combater a economia capitalista e a merecida supremacia dos Estados Unidos.
E infindáveis variações dessas batatadas.
Ainda não acabou. Ajuda o denial do aquecimento global o fato de se tratar de um “desastre épico”, sim, mas “em câmara lenta”, na bem-sacada analogia do jornalista Andrew Revkin, no New York Times de ontem.
[Revkin é o principal repórter ambientalista do jornal e um dos melhores do ramo na grande imprensa estrangeira.]
Ele diz que os defensores de políticas destinadas a reduzir o crescente impacto humano sobre o clima de há muito tinham a esperança de que um novo patamar de confirmação disso, como as importantes conclusões de um grande relatório, quebrariam a resistência do público a acreditar e mudar. Mesmo que as descobertas e previsões apareçam em ritmo gradual, elas desencadeariam uma resposta ultra-rápida – “fast-motion” é a expressão que ele usa.
Mas as projeções do painel científico da ONU, sustenta Revkin, praticamente esvaziaram algumas das mais dramáticas possibilidades.
Ele compara as possíveis reações ao prognóstico de que até o fim do século o nível do mar poderá subir 60 cm – e continuar subindo pelos próximos séculos – a um debate sobre a velocidade de um carro que começa a descer uma ribanceira a caminho do penhasco em que ela termina: ele está indo a 1 ou a 2 km por hora?
Até que ponto, se perguntam cientistas ouvidos pelo repórter, as pessoas entendem que tanto faz 1 ou 2 km: o essencial é a inevitabilidade do desastre.
Revkin faz outra analogia: “Com que rapidez a água tem de subir até o seu pescoço para você entrar em pânico (especialmente se, como Leonardo DiCaprio no “Titanic”, você está algemado ao navio)?
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