Quatro domingos depois de sair no New York Times, o Estado reproduz hoje um comentário do ombudsman, ou “editor público”, do jornal, Clark Hoyt, sobre um polêmico artigo do historiador Edward Luttwak, publicado em 12 de maio.
Luttwak escreveu que o Islã jamais perdoará Barak Obama por ter ele ter se convertido ao cristianismo. O seu pai era muçulmano converso. Ele morreu quando Obama tinha 2 anos. O seu padastro, segundo marido de sua mãe, era muçulmano. Em Jacarta, Indonésia, onde viveu 5 anos, Obama frequentou uma escola islâmica e outra, católica.
Luttwak chegou a escrever que, se fosse visitar um país muçulmano, um eventual presidente Obama daria uma imensa dor de cabeça aos responsáveis por sua segurança, “porque o simples ato de protegê-lo seria pecaminoso para os guardas islâmicos”.
O ombudsman entrou na história porque, nas suas palavras, “muitos leitores do Times consideraram o artigo irresponsável ou falso”. Um deles, por sinal, observou que “o Islã não é como o nosso cabelo ou a cor da nossa pele, que herdamos dos nossos pais”. [Trata-se do jornalista Ali Kamel, do Globo, mas a passagem do texto de Hoyt que o cita e a outro leitor não aparece na versão do Estado, mas isso é detalhe.]
O que interessa no comentário do ombudsman, do ângulo da feitura de um jornal, é o que acontece, ou deixa de acontecer na imprensa com artigos de opinião, oferecidos ao jornal ou a convite. No Brasil, escritos desse tipo saem como vieram – no máximo o editor da página os “põe no tamanho”, cortando o que exceder o espaço previsto. Se o autor diz que o dia é escuro e a noite é clara, problema dele. O jornal não tem nada com isso.
Já no New York Times e, decerto, em outros jornais do mesmo porte pelo mundo afora, os editores passam o pente fino não nas opiniões dos articulistas, mas nos fatos em que elas se baseiam – além de dar uma guaribada na linguagem do original para torná-lo mais claro ou suscinto.
No caso da momentosa colaboração de Luttwak, o ombudsman, ecoando os leitores, se pergunta se os responsáveis pela página checaram adequadamente os fatos mencionados pelo autor para provar a sua tese de que a maldição de Alá paira sobre a cabeça de Obama [a expressão é minha, não dele, mas é o que quis dizer].
O editor David Shipley disse que o artigo foi checado, sim, pelos fechadores. Eles consultaram o Alcorão, textos relacionados, artigos de jornal e historias do Islã, para conferir se Luttwak sabia do que estava falando.
Mas, para o ombudsman, foi pouco. Como escreve – e quase dá para ver o seu ar de reprovação – “nenhum estudioso do Islã foi consultado”. Segundo o editor da página lhe explicou, “não costumamos convidar especialistas para pesar o trabalho dos nossos colaboradores”.
O fato é que o ombudsman resolveu fazer ele mesmo o serviço, entrevistando cinco islamistas de cinco universidades americanas. [Nenhum deles aceitou a interpretação dos preceitos muçulmanos dada por Luttwak, mas – de novo – isso é detalhe.]
Ainda está por vir o dia em que jornais brasileiros terão o mesmo cuidado – por respeito ao leitor. Como diz Hoyt, parafraseando no título do seu comentário uma expressão clássica do ofício, todos têm direito às suas próprias opiniões – “mas aos próprios fatos”?
P.S. Não é só para expurgar erros factuais de um artigo assinado – ou deixar de publicá-lo por causa deles – que a intromissão dos editores é fundamental. Vale também para ajudar o leitor a entender o que o articulista escreveu, se ele tiver resvalado para o hermetismo.
Hoje, por exemplo, o Estado publica um texto do sociólogo José de Souza Martins, da USP. O assunto é Ruth Cardoso. Às tantas, ele escreve: “Ruth personificou a opção pascal na política brasileira que se inaugura com a posse de Fernando Henrique Cardoso.”
Já li uma coisa ou outra na vida, mas não sei o que é “opção pascal” e algo me diz que não devo ser o único a ter ficado no escuro. Pascal de Páscoa? Do filósofo Blaise Pascal? Mesmo relendo o artigo – de resto excelente – não peguei o espírito da coisa.
Pior. Quem baixou o texto não só não acrescentou um “ou seja…” depois da frase, como ainda tascou a “opção pascal” no título. E não se diga que o subtítulo – “O abraço de Lula em FHC no velório cobra um pacto sem o qual PT e PSDB perecerão e o Brasil que se deseja perderá” – resolveu o enigma.