Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Banditismo e terror

O Fantástico deste domingo (4/12) tratou com prudência, agora há pouco, o ataque ao ônibus da linha 350 em que cinco pessoas foram mortas e 13, feridas. A reportagem teve como fio condutor o relato do motorista do ônibus, que queria salvar todos os passageiros. Terminou com palavras da inspetora da Polícia Civil Marina Magessi sobre o abismo – para ela intransponível – entre seu discurso e o de uma participante do ataque ao ônibus, menina órfã de pai e mãe, analfabeta aos 13 anos de idade, que ela havia interrogado. “Fiquei sem saber como interrogá-la”, disse Marina.


A mídia, que é co-responsável pela situação a que se chegou no Rio, em São Paulo e na maior parte das grandes cidades brasileiras, continua inteiramente perdida.


Ontem, no Globo, o sociólogo Glaucio Ary Dillon Soares, um estudioso sério, usou a palavra “terrorismo” para descrever o episódio do dia 29 em Brás de Pina. Hoje, Fernando de Barros e Silva fala na Folha de S. Paulo de “ato terrorista”.


É preciso tomar cuidado com essa terminologia para não se trabalhar com um conceito errado. De que terrorismo se trata?


Terror à sombra do Estado


A melhor explicação está na Folha de sexta-feira (2/12), em entrevistas do geógrafo Jailson de Souza e Silva, coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), e do sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


Jailson relembrou o assassinato de 21 pessoas na favela de Vigário Geral, em 1993, por um grupo de extermínio formado por policiais militares. Eles teriam se vingado da morte de quatro colegas. “O combate irracional da chamada ´guerra às drogas´ legitimou o uso da violência sob o pretexto do combate à criminalidade”, disse Jailson. O padrão passou a valer para os dois lados. Segundo o geógrafo, “os moradores das favelas deixaram de ser cidadãos protegidos pela polícia para serem a população civil do território inimigo”.


Ele citou também as chacinas de Acari (11 mortos, em 1990) e, neste ano, o assassinato em série de 29 pessoas em ruas de Nova Iguaçu e Queimados, atribuído a policiais militares descontentes com o comandante de um batalhão da Baixada Fluminense. Ignacio Cano destacou que nesse último caso nem houve morte de policial militar como pretexto.


Trata-se, portanto, antes de mais nada, de terrorismo à sombra do Estado, copiado por bandidos.


Quando se lê o relato da menina que ajudou a parar o ônibus que seria incendiado, percebe-se que o ataque só hiperbolicamente pode ser chamado de “ato terrorista”. O bandido mandou, ela foi lá e fez. Ponto. O sociólogo Cano põe a coisa com simplicidade: os policiais da Baixada liquidaram 29 porque matar dois ou três não chama a atenção. “Queimar ônibus não choca mais [seiscentos e tantos foram queimados em cinco anos, informou hoje a TV Globo; alô, França!], então os traficantes deixaram os passageiros presos para morrer”. Estariam, assim, “mostrando serviço”.


Padrões de extermínio


A polícia, em estreita ligação com o Exército, criou um padrão de extermínio e os bandidos o seguem. Para não ir mais longe na História do Brasil (Canudos, Bahia, 1893-97; Sítio do Caldeirão, 1937 – quando o então ministro da Guerra, general Eurico Dutra, depois presidente da República, autorizou a Polícia do Ceará a usar aviação militar cedida pelo Exército contra civis, pela primeira e única vez, até aqui, no Brasil), tome-se como ponto de partida o primeiro grupo de extermínio de bandidos de que há notícia no Brasil, criado em 1958 na Polícia do antigo Distrito Federal, chefiada por um general, Amaury Kruel.


Em 1986, pediram ao então comandante da PM do Rio de Janeiro, coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, uma explicação para a banalização dos homicídios, já em pleno e desenfreado curso. Sua resposta: “Quando, na ditadura, o Estado brasileiro se outorgou o direito de condenar e executar sem julgamento, os criminosos se sentiram autorizados a fazer o mesmo”.


No Brasil existe pena de morte. É ilegal, mas existe.


Muitos policiais matam simplesmente porque são criminosos. E ações criminosas de policiais estão conjugadas, de um modo ou de outro, a cem por cento das ações criminosas de bandidos propriamente ditos. É o que se noticia sobre os morros da Fé e do Quitungo, na área onde o ônibus foi incendiado.


Outros policiais, que não são criminosos, acham, assim como militares acham, que matar resolve. Tendem a procurar para os problemas da sociedade soluções tão “simples” quanto falsas, que só os agravam, até que se tornam o próprio problema.


Como a imprensa está muito amarrada a fontes policiais, ela geralmente segue esse padrão de raciocínio. O contraponto vem dos estudiosos que, felizmente, ganharam espaço na mídia nos últimos anos. Mas a primeira incursão importante de um deles numa função executiva, empreendida pelo antropólogo Luís Eduardo Soares no Rio de Janeiro (governo de Garotinho) e depois na esfera federal (governo Lula), fracassou.


Ver também Terror e barbárie.