A Operação Furacão foi desencadeada no dia 13 de abril. Dez dias antes, em entrevista ao Observatório da Imprensa, o repórter Luarlindo Ernesto, do O Dia, disse que as máquinas caça-níqueis, hoje a atividade mais rendosa dos bicheiros, entraram no Rio de Janeiro graças a um laudo favorável do Instituto de Criminalística obtido pelo então chefe da Polícia Civil do governo de Leonel Brizola, Arnaldo Campana, já falecido. Campana, segundo Luarlindo, foi subornado por uma máfia francesa.
“Está toda hora nas páginas policiais dos jornais a máfia dos caça-níqueis. Mas como é que esses caça-níqueis chegaram ao Brasil? Foi durante o primeiro governo Brizola [1983-86]”, disse Luarlindo. “O chefe de Polícia era um cidadão chamado Arnaldo Campana. Ele participou de um encontro de polícias do mundo inteiro em Paris, foi apresentado ao Ministro do Interior francês da época, que era corso e ligado à Brise de Mer. [O ministro era Gaston Deferre, veteraníssimo prefeito socialista de Marselha. Ele não era corso, nem marselhês, mas tinha ligações conhecidas com o submundo da grande cidade do Sul da França.] Foi ele que deu uma grana para o Campana conseguir um laudo do ICCE, do Instituto de Criminalística [Carlos Éboli], dizendo que as maquininhas não são jogos de azar e que não tinha material contrabandeado, era tudo nacional”.
Luarlindo também contou que foi o autor da uma reportagem que levou a Polícia Federal a investigar a presença no Brasil do mafioso Tommaso Buscetta e a prendê-lo, em 1983. Extraditado para os Estados Unidos, Buscetta fez um acordo com o governo americano e provocou o maior terremoto da história da Máfia até hoje.
Eis a entrevista.
Repórter descobre que Buscetta havia voltado ao Brasil
A reportagem de polícia conquistou feitos mais relevantes no passado?
Luarlindo Ernesto – Eu comecei em 1958, garoto ainda, fazendo jornalismo investigativo. Nós nos antecipávamos às investigações da polícia. E isso era bem melhor para o leitor porque ele não tinha só o lado oficialesco, ou o lado oficial da história. Você tinha como escrever sobre aquilo que você investigou e confirmou. Eu acho que hoje em dia é mais difícil porque está se fazendo jornalismo baseado nas informações oficiais. Principalmente na área policial. Porque os jornais enxugaram os quadros de repórteres e isso fez com que as redações fiquem impossibilitadas de deixar dois, três repórteres investigando um caso a fundo. Então, é melhor pegar logo o lado oficial, que é mais rápido. E mais barato.
Hoje se fala mais em jornalismo investigativo. Os padrões de apuração melhoraram?
L.E. – De modo nenhum. Em 1983, eu, baseado numa série de crimes que aconteceram em apartamentos alugados por temporada na Zona Sul do Rio de Janeiro, investigando isso, cheguei a um cidadão chamado Dom Tommaso Buscetta. Provei que ele estava de volta ao Brasil. Eu já tinha trabalhado no caso da extradição dele em 1972, quando ele foi preso junto com o pessoal da Brise de Mer. É a máfia francesa, Brisa do Mar. Foi preso até pelo famigerado delegado Sérgio Fleury. Foram feitas prisões em Brasília, Bahia, Paraná, Rio de Janeiro. Dom Tommaso foi deportado em seguida. Em 83 ele tinha fugido da Itália e voltou ao Brasil. Eu já estava desconfiado dele porque ele tinha posses aqui no Brasil [às quais] nem a Polícia Federal tinha conseguido chegar, fazenda no Pará, além da mulher e filhos brasileiros, que ele tinha conseguido.
Essa segunda prisão foi a que depois levou Buscetta a Nova York? [Buscetta fez um acordo com as autoridades americanas e provocou um terremoto na Máfia, assim resumido em artigo de Walter Maierovitch: “As confissões de Buscetta ao juiz Giovanni Falcone resultaram na abertura do chamado maxiprocesso criminal, que, inicado em fevereiro de 1986, teve 475 réus mafiosos. O julgamento terminou em dezembro de 1987 com sanções pesadíssimas: 19 condenações à pena de prisão perpétua e, somadas as outras sanções, 2.665 anos de cárcere”.]
L.E. – Exatamente. Eu fui depor no caso dele em 2000, em Roma, na Justiça italiana. Foi investigando essa série de crimes misteriosos – vítimas estrangeiras com entrada no país com passaporte falso – que eu voltei a encontrar Dom Tommaso. O Jornal do Brasil me deu condições, me deu uma semana, o que foi pouco, mas eu cheguei onde eu cheguei. Isso aí é jornalismo investigativo. Porque até então a Polícia do Rio não resolvia nada, a Polícia Federal não estava acionada. Quando eu comprovei a presença dele ainda no Rio, em Penedo, eu esbarrei num muro chamado Máfia.
A Polícia estadual não tinha condições de fazer nada. Eu então fui bater lá na porta da Polícia Federal: “Eu tenho isso, isso, isso, isso, não posso ir mais adiante”. Ele foi preso um ano depois, e deportado novamente em 84. Mas graças ao jornalismo investigativo, que na época não chamava jornalismo investigativo… não tinha esse nome pomposo.
Os casos iam para delegacias diferentes, a polícia não ligava os fatos
Eu não me baseava nas informações da polícia! Já tinham morrido cinco ou seis estrangeiros com passaporte falso, em locais diferentes, Copacabana, Ipanema e Leblon, sempre em apartamentos de aluguel por temporada, as circunstâncias quase idênticas, em delegacias de polícia diferentes, e a polícia não unia os casos. Me chamou atenção, eu resolvi unir. Larguei meu horário cômodo de dez da manhã às cinco da tarde e passei a freqüentar esses locais, os locais dos crimes, de madrugada, para conversar com os porteiros, os vigias, os zeladores da noite (os crimes aconteciam de madrugada). Eu inverti meu horário de trabalho para poder chegar a isso.
Até que culminou com a morte de uma garota de 14 anos. Ela morreu de overdose numa orgia lá em Penedo. O dono da casa era um cidadão chamado Lélio Paolo Gigante. Nada mais, nada menos do que o homem encarregado de falsificar os passaportes da quadrilha do Buscetta em 72, e dos franceses. Desse bando todo de 1972 só tem um sobrevivente, é Le Beau Serge, Christian David é o nome de batismo dele, ele vive na Espanha. Uns jornalistas franceses estiveram em novembro [de 2006] lá em casa, vieram me entrevistar sobre esse negócio da Brise de Mer, para eu contar como é que foi em 72.
No primeiro governo Brizola, a permissão para os caça-níqueis
Nunca houve interrupção das atividades desses grupos no Brasil.
L.E. – Está toda hora nas páginas policiais dos jornais a máfia dos caça-níqueis. Mas como é que esses caça-níqueis chegaram ao Brasil? Foi durante o primeiro governo Brizola. O chefe de Polícia era um cidadão chamado Arnaldo Campana. Ele participou de um encontro de polícias do mundo inteiro em Paris, foi apresentado ao ministro do Interior francês da época, que era corso e ligado à Brise de Mer [vide nota na abertura deste texto]. Foi ele que deu uma grana para o Campana conseguir um laudo do ICCE, do Instituto de Criminalística [Carlos Éboli], dizendo que as maquininhas não são jogos de azar e que não tinha material contrabandeado, era tudo nacional. Os jornalistas franceses que vieram me entrevistar em novembro me mostraram um videoteipe com uma entrevista de Le Beau Serge em que ele confirma essas informações, que eu já tinha desde aquela época.
As máquinas entraram no país, recentemente tivemos a família do Castor de Andrade metida numa guerra em que já morreram mais de 50 pessoas por causa disso.
Onde o senhor começou, por onde você passou?
L.E. – Eu comecei em 1958. Meu velho me botou de castigo porque ele conhecia um repórter, Silva Júnior, que trabalhava de madrugada na Última Hora, do Samuel [Wainer]. Para eu não ficar jogando bola na rua durante o dia, ele disse: “Leva ele para trabalhar contigo”. O Silva Junior ficava dormindo na redação e eu ficava nos telefones fazendo ronda nas delegacias… Eu tinha 14 para 15 anos. Só em 62, quando eu estava saindo do Exército, a Última Hora me contratou. Aí eu não parei mais: Última Hora, Globo, Luta [Democrática], Diário de Notícias, Gazeta de Notícias, O Dia, a Última Hora três vezes, Folha de S. Paulo, Manchete… Acho que eu só não trabalhei no Diário Oficial. No JB foram 12 anos.
E agora de volta ao O Dia.
L.E. – Estou aqui já há 13 anos, pela terceira vez.
Não usar subterfúgios para obter informações
Quando o senhor vai para a porta dos apartamentos de madrugada, nesse seu relato, o senhor se apresenta ou não como jornalista?
L.E. – De início, não, eu primeiro tenho que sondar a barra para, sei lá, estudar a pessoa que eu vou abordar. Tem que saber chegar para poder saber sair, porque se não embola tudo.
Em algum momento o senhor diz que é jornalista.
L.E. – Digo. No final ou no meio da conversa, eu digo: “Sou jornalista”, mas não vou, jamais, revelar o nome da pessoa. Para você ter uma idéia de como eu preservo a testemunha, nesse caso do Buscetta o dono de um secos e molhados de Penedo disse: “Esse cara aqui estava sempre aqui com Seu Lélio Paolo”. E eu na matéria botei “vulgo Mineiro, dono de um comércio”, e pus um local diferente, para não expor o homem. A TV Globo, na ocasião, mandou um repórter para lá, procurando o Tommaso Buscetta, e o repórter não encontrou nada. E o Jornal Nacional deu que tudo aquilo de Tommaso Buscetta era “fruto da imaginação de um jornalista de um matutino carioca” – quer dizer, ainda me sacaneou. E ele, um ano depois, foi preso… E o “fruto da imaginação” foi para o ralo. Nem a TV Globo conseguiu achar essa testemunha e outras mais que eu achei – que apontavam a presença de Buscetta naquele local. Preservando a testemunha, eu preservo a fonte de informação.
Do meio da conversa em diante eu abro o jogo, que é para a pessoa saber com quem ele está conversando. Eu acho uma covardia chegar e usar subterfúgio para conseguir uma história.
Nos meus primeiros 50 anos de jornalismo ainda não fiz isso. Nos primeiros 50. Nos outros 50, não sei, posso ficar gagá.