A Carta Capital desta semana levou para a capa reportagem sobre um ‘duelo’ entre as redes de televisão Record e Globo. O título é bombástico: ‘A Record peita a Globo – Com gastos milionários, a emissora da Igreja Universal avança sobre audiência e anunciantes. O SBT de Silvio Santos já ficou para trás’. Na página 36: ‘A cruzada da Record – A emissora do bispo Macedo deixa o SBT para trás e incomoda a Rede Globo’. Os fatos narrados na reportagem não sustentam tamanho entusiasmo, reforçado por uma ilustração em que a logomarca da Recod “bica” e estilhaça o olho do plim-plim da Globo.
1. ‘A capacidade de produção de conteúdo próprio da Record é de 85 horas semanais, o maior entre as emissoras, à exceção da rival’ (a Globo, presume-se). Mas quantas horas semanais de conteúdo produz a Globo? A revista não informa (numa pesquisa rápida, não consegui achar o dado).
2. ‘Na esfera política, onde a Globo conta com tradicionais e poderosos aliados, a Record procura contrabalançar [sic; o verbo é transitivo] por meio do apoio da bancada evangélica no Congresso’. Não caberia à revista qualificar para seus leitores dita bancada? (Isso não quer dizer que a ‘bancada’ que apóia a Globo seja mais qualificada).
3. O que em parágrafo anterior era uma afirmação (‘à exceção da rival‘) torna-se dúvida logo adiante: ‘Teria a Globo, depois de mais de três décadas de liderança absoluta, encontrado uma rival à altura?’
4. “Quando o assunto é o futebol brasileiro, a Record continua a apanhar da Globo na disputa pelos direitos de transmissão de competições, mas não mais de goleada’. Também aqui seria bem-vinda uma qualificação (desqualificação?) dos cartolas interlocutores das emissoras de televisão. Ou será que os cartolas passarão a ser varões de Plutarco se vierem a preferir a Record?
5. Após um parágrafo em que a direção da Globo é citada – numa argumentação sobre as dimensões do mercado publicitário –, a revista escreve: ‘De fato, a Record exibe um fôlego financeiro quase inesgotável, embora a direção da emissora negue veementemente que a ligação com a Igreja Universal do Reino de Deus seja a principal fonte de receita’. E será que a revista não conseguiria apurar um pouquinho além do declaratório? Existe uma informação importante, na página 39, a respeito do comportamento do mercado publicitário: quem ganha o rótulo de ‘vice’ na audiência tem mais cacife para cobrar pela inserção de anúncio. Por aí teria sido possível, talvez, fazer uma comparação importante: se a receita de publicidade é tão desequilibrada (cinco vezes maior na Globo), como é financiada a expansão da Record?
6. Depois de encher o balão da Record, vem o momento de baixar a bola. Na página 38, o texto diz que ‘ultrapassar a Globo, momentaneamente, nos índices de audiência não é uma façanha inédita’. O SBT já o conseguiu no fim dos anos 90. Gráficos mostram a distância atual entre Globo e Record/SBT. E a própria reportagem constata: ‘Basta um olhar sobre os números da Record e os da Globo para perceber, entretanto, que um abismo ainda separa as duas emissoras’. Quer dizer: na capa da revista, a Record ‘peita’ a Globo. Na reportagem, a folhas tantas, um abismo as separa. Os editores deveriam escolhido um caminho. Mas é claro que o caminho da sobriedade tiraria da capa a reportagem. Foi parar na capa por quê? Se alguém pensar em política partidária não estará longe de acertar. A equação ginasiana é: Globo = tucanato # de tudo o que for contra o tucanato. Ou: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Quem percebe a estreita conexão entre Globo e governo Lula acha graça nisso.
7. A exaltação, em determinado trecho, esquece tudo o que a Carta Capital já escreveu contra propriedade cruzada dos meios de comunicação. Vai lá o trecho: ‘Uma demonstração recente do poder financeiro da Record está na compra da TV Guaíba, no Rio Grande do Sul, concretizada na terça-feira, 20. Além da emissora, foram adquiridas duas rádios, que também pertenciam ao Grupo Caldas Júnior, e dias antes o jornal Correio do Povo‘. E seguem-se expressões de admiração pelo ‘poder financeiro’ da Record. A revista tem “memória seletiva”.
Conclusão: quando se politiza e se partidariza excessivamente o noticiário, perde-se o senso de proporção.
Registre-se que esta edição (437) da Carta Capital tem 15 páginas de anúncios, das quais 12 são de empresas estatais, duas de empresas privadas, Trevisan e IBM, e uma da própria casa (Carta na Escola). Eis aí uma tarefa a desafiar o novo ministro da Comunicação, Franklin Martins: explicar à população quais são os critérios de escolha de mídias para a propaganda oficial. Na Carta Capital, na Record e na Globo, entre muitos outros meios de comunicação.
P.S. – A reportagem sobre o SBT, que vem em seguida na Carta Capital, faz uma radiografia crítica realista dos rumos da emissora de Silvio Santos.
Leia também ‘O falso segundo lugar da Record‘.